FERREIRA
GULLAR
Dialética da
mudança
As
certezas nos dão tranquilidade; pô-las em questão equivale a tirar o chão de
sob nossos pés
Certamente
porque não é fácil compreender certas questões, as pessoas tendem a aceitar
algumas afirmações como verdades indiscutíveis e até mesmo a irritar-se quando alguém
insiste em discuti-las. É natural que isso aconteça, quando mais não seja
porque as certezas nos dão segurança e tranquilidade. Pô-las em questão
equivale a tirar o chão de sob nossos pés.
Não
necessito dizer que, para mim, não há verdades indiscutíveis, embora acredite
em determinados valores e princípios que me parecem consistentes. De fato, é
muito difícil, senão impossível, viver sem nenhuma certeza, sem valor algum.
No
passado distante, quando os valores religiosos se impunham à quase totalidade
das pessoas, poucos eram os que os questionavam, mesmo porque, dependendo da
ocasião, pagavam com a vida seu inconformismo.
Com
o desenvolvimento do pensamento objetivo e da ciência, aquelas certezas
inquestionáveis passaram a segundo plano, dando lugar a um novo modo de lidar
com as certezas e os valores.
Questioná-los,
reavaliá-los, negá-los, propor mudanças às vezes radicais tornou-se frequente e
inevitável, dando-se início a uma nova época da sociedade humana. Introduziu-se
o conceito não só de evolução como o de revolução.
Naturalmente,
essas mudanças não se deram do dia para a noite, nem tampouco se impuseram à
maioria da sociedade. O que ocorreu de fato foi um processo difícil e
conflituado em que, pouco a pouco, a visão inovadora veio ganhando terreno e,
mais do que isso, conquistando posições estratégicas, o que tornou possível
influir na formação de novas gerações, menos resistentes a visões
questionadoras.
A
certa altura desse processo, os defensores das mudanças acreditavam-se senhores
de novas verdades, mais consistentes porque eram fundadas no conhecimento
objetivo das leis que governam o mundo material e social.
Mas
esse conhecimento era ainda precário e limitado. Basta dizer que, até começos
do século 20, ignorava-se a existência de microrganismos -como vírus e
bactérias-, o que inviabilizava tratar doenças como a tuberculose.
Costumo
dizer que o poeta Augusto dos Anjos foi assassinado pelo tratamento médico de
uma pneumonia: submeteram-no a sangrias e lavagens intestinais, debilitando-o
mais, ou seja, anularam-lhe as defesas naturais e o desidrataram.
A
descoberta dos vírus e bactérias como causas de muitas e graves enfermidades
possibilitou a produção dos antibióticos, o que representou um enorme avanço na
cura desse tipo de doenças.
Igualmente
significativas foram as mudanças nos terrenos econômico e político, resultantes
da crítica ao capitalismo e da luta dos trabalhadores em defesa de seus
direitos. O comunismo se impôs como uma alternativa à democracia burguesa e
influi até hoje na visão ideológica de parte considerável da sociedade
contemporânea.
Todos
esses fatos -que são apenas uns poucos exemplos do que tem ocorrido- tornam
indiscutível a tese de que a mudança é inerente à realidade tanto material
quanto espiritual, e que, portanto, o conceito de imutabilidade é destituído de
fundamento.
Ocorre,
porém, que essa certeza pode induzir a outros erros: o de achar que quem
defende determinados valores estabelecidos, em contraposição a outros
considerados inovadores, está indiscutivelmente errado.
Em
outras palavras, bastaria apresentar-se como inovador para estar certo. Será
isso verdade? Os fatos demonstram que tanto pode ser como não.
Mas
também pode estar errado quem defende os valores consagrados e aceitos. Só que,
em muitos casos, não há alternativa senão defendê-los. E sabem por quê? Pela
simples razão de que toda sociedade é, por definição, conservadora, uma vez
que, sem princípios e valores estabelecidos, seria impossível o convívio
social. Uma comunidade cujos princípios e normas mudassem a cada dia seria
caótica e, por isso mesmo, inviável.
Por
outro lado, como a vida muda e a mudança é inerente à existência, impedir a
mudança é impossível. Daí resulta que a sociedade termina por aceitar as
mudanças, mas apenas aquelas que de algum modo atendem a suas necessidades e a
fazem avançar.
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