domingo, 6 de maio de 2012


FERREIRA GULLAR

Dialética da mudança

As certezas nos dão tranquilidade; pô-las em questão equivale a tirar o chão de sob nossos pés

Certamente porque não é fácil compreender certas questões, as pessoas tendem a aceitar algumas afirmações como verdades indiscutíveis e até mesmo a irritar-se quando alguém insiste em discuti-las. É natural que isso aconteça, quando mais não seja porque as certezas nos dão segurança e tranquilidade. Pô-las em questão equivale a tirar o chão de sob nossos pés.

Não necessito dizer que, para mim, não há verdades indiscutíveis, embora acredite em determinados valores e princípios que me parecem consistentes. De fato, é muito difícil, senão impossível, viver sem nenhuma certeza, sem valor algum.

No passado distante, quando os valores religiosos se impunham à quase totalidade das pessoas, poucos eram os que os questionavam, mesmo porque, dependendo da ocasião, pagavam com a vida seu inconformismo.

Com o desenvolvimento do pensamento objetivo e da ciência, aquelas certezas inquestionáveis passaram a segundo plano, dando lugar a um novo modo de lidar com as certezas e os valores.

Questioná-los, reavaliá-los, negá-los, propor mudanças às vezes radicais tornou-se frequente e inevitável, dando-se início a uma nova época da sociedade humana. Introduziu-se o conceito não só de evolução como o de revolução.

Naturalmente, essas mudanças não se deram do dia para a noite, nem tampouco se impuseram à maioria da sociedade. O que ocorreu de fato foi um processo difícil e conflituado em que, pouco a pouco, a visão inovadora veio ganhando terreno e, mais do que isso, conquistando posições estratégicas, o que tornou possível influir na formação de novas gerações, menos resistentes a visões questionadoras.

A certa altura desse processo, os defensores das mudanças acreditavam-se senhores de novas verdades, mais consistentes porque eram fundadas no conhecimento objetivo das leis que governam o mundo material e social.

Mas esse conhecimento era ainda precário e limitado. Basta dizer que, até começos do século 20, ignorava-se a existência de microrganismos -como vírus e bactérias-, o que inviabilizava tratar doenças como a tuberculose.

Costumo dizer que o poeta Augusto dos Anjos foi assassinado pelo tratamento médico de uma pneumonia: submeteram-no a sangrias e lavagens intestinais, debilitando-o mais, ou seja, anularam-lhe as defesas naturais e o desidrataram.

A descoberta dos vírus e bactérias como causas de muitas e graves enfermidades possibilitou a produção dos antibióticos, o que representou um enorme avanço na cura desse tipo de doenças.

Igualmente significativas foram as mudanças nos terrenos econômico e político, resultantes da crítica ao capitalismo e da luta dos trabalhadores em defesa de seus direitos. O comunismo se impôs como uma alternativa à democracia burguesa e influi até hoje na visão ideológica de parte considerável da sociedade contemporânea.

Todos esses fatos -que são apenas uns poucos exemplos do que tem ocorrido- tornam indiscutível a tese de que a mudança é inerente à realidade tanto material quanto espiritual, e que, portanto, o conceito de imutabilidade é destituído de fundamento.

Ocorre, porém, que essa certeza pode induzir a outros erros: o de achar que quem defende determinados valores estabelecidos, em contraposição a outros considerados inovadores, está indiscutivelmente errado.

Em outras palavras, bastaria apresentar-se como inovador para estar certo. Será isso verdade? Os fatos demonstram que tanto pode ser como não.

Mas também pode estar errado quem defende os valores consagrados e aceitos. Só que, em muitos casos, não há alternativa senão defendê-los. E sabem por quê? Pela simples razão de que toda sociedade é, por definição, conservadora, uma vez que, sem princípios e valores estabelecidos, seria impossível o convívio social. Uma comunidade cujos princípios e normas mudassem a cada dia seria caótica e, por isso mesmo, inviável.

Por outro lado, como a vida muda e a mudança é inerente à existência, impedir a mudança é impossível. Daí resulta que a sociedade termina por aceitar as mudanças, mas apenas aquelas que de algum modo atendem a suas necessidades e a fazem avançar.

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