quinta-feira, 24 de maio de 2012


CONTARDO CALLIGARIS

Terremotos, bombas etc.

Liguei a luz, acordei minha mulher e constatamos que o lampadário oscilava como um pêndulo

CHEGUEI A Veneza cansado, no fim da tarde de sábado 19. Fui dormir cedo, com uma pequena ajuda química. Pelas 4h de domingo, ainda no sono, pareceu-me que alguém estivesse transando na minha cama, bem do meu lado. Com uma fórmula bizarramente polida, pensei: isto é indelicado, transar aqui enquanto estou dormindo.

O fato é que a cama (de nogueira, como a maioria dos móveis europeus do século 19) estava literalmente gemendo, como se alguém a sacudisse com violência sobre-humana. Ainda sonolento e no escuro, pensei que as camas antigas são uma loucura, não dá para se levantar sem acordar o outro. Mas quantas vezes seguidas minha mulher estava se levantando? E por quê?

Nova ideia: ela estava tendo uma convulsão. Seria inédito, mas vai que a comida do dia anterior não tivesse caído bem.

Já tinham se passado 15 segundos quando liguei a luz e acordei minha mulher: juntos, vimos o lampadário oscilando como um pêndulo. A cama, enfim, silenciou, mas agora era óbvio: terremoto.

Minha mulher se virou e continuou dormindo. Numa pochete, juntei passaportes, passagens e carteiras; destravei a porta do apartamento para facilitar a fuga. Se chegasse um segundo tremor, eu arrastaria minha mulher até à rua, onde já se reunira um grupo de vizinhos.

Como sempre depois de uma longa ausência, a internet de casa não funcionava; liguei o roaming de dados de meu celular de São Paulo (não era o momento de fazer economias): já havia centenas de comentários on-line -os mais numerosos e apavorados eram postados de Ferrara e Módena, na Emilia Romagna. Ou seja, o epicentro do terremoto era, provavelmente, a mais de cem quilômetros de Veneza.

Às 6h, contra minha vontade, peguei no sono. Um pensamento sedativo acabou com minha vigia: terremotos não são frequentes no nordeste da Itália. Houve um, forte, em 1976, mas foi nas montanhas do Friuli; aqui em Veneza, na planície e na beira do mar, essas coisas "nunca" acontecem. Pois é, "nunca" é jeito de falar.

Outro sedativo foi a ideia de que meu edifício, em Castello, sobrevivera por 500 anos e já devia ter testado sua solidez contra outros terremotos. Besteira: soube no dia seguinte que, mais perto do epicentro, o terremoto destruíra igrejas, castelos e edifícios tão antigos quanto o meu.

Depois do tremor inicial, houve um enxame sísmico de mais de cem pequenos terremotos que não percebi -mas estou, desde então, com sintomas de labirintite.

Domingo, ao ler os jornais, aprendi que o terremoto não era a única razão por a Itália estar de luto. No sábado de manhã, perto de Brindisi, na entrada de uma escola, uma bomba matara uma menina de 16 anos e ferira e queimara cinco outras, uma das quais está entre a vida e a morte.

A polícia dispõe de uma imagem do assassino, filmado por uma câmara de segurança enquanto esperava a chegada de suas vítimas; seu DNA foi encontrado nas bitucas dos cigarros que ele fumou durante a espera. Talvez se trate apenas da loucura assassina de alguém que quer se vingar de todos e da vida. Mas houve comentaristas que teceram um paralelo com os anos 1970, quando o terror (de esquerda e de direita) tomou conta do país.

De fato, desde 2003, na Itália, repetem-se atentados políticos no estilo dos anos 1970. As Brigadas Vermelhas não existem mais (embora existam umas ditas Novas Brigadas Vermelhas), mas a conjuntura pode alimentar uma estupidez parecida com a do terror da época. Desemprego alto, insegurança econômica e, sobretudo, como confirmaram as eleições administrativas desta semana, caos partidário (desastroso para a direita), confusão ideológica, vitória de demagogos populistas etc. são todos ingredientes do clima preferido pelo terror.

Claro que aquela época já passou. Estamos num momento muito diferente, e não vai recomeçar nada parecido. Não é?

Da mesma forma, nestes dias, fala-se, às vezes, que a unificação da Europa foi um erro. Sim, certo, tivemos 70 anos de paz entre as grandes nações europeias, mas essa proeza inédita não seria comprometida pela eventual falência da União Europeia. Nada a ver, não é?

Guerra Mundial na Europa é coisa do passado. É como terrorismo na Itália ou como terremoto na planície Padana. Isso não acontece mais (ou não acontece nunca).

Pois é, eu, aqui em Veneza, acabo de verificar que Forrest Gump tem razão: às vezes, "shit happens" - as m... acontecem.

ccalligari@uol.com.br

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