quarta-feira, 16 de maio de 2012


ANTONIO PRATA

Anticlímax

Na vida o roteiro algumas vezes é ruim, troncho, sem graça nem sentido; ele a Chris não pôde consertar

NA SITUAÇÃO em que conheci a Chris Riera era bem provável que não houvesse gostado dela -e assim seria, fosse ela qualquer outra pessoa que não a Chris Riera.

Uns cinco anos atrás, Chris avaliou um roteiro que escrevi para o diretor Paulo Morelli. Era minha primeira experiência com longas-metragens e, apesar do conhecimento e da paciência do Paulo e de sua parceira no projeto, Nina Crintzs, me ajudando como podiam, meu amadorismo falou mais alto: o roteiro ficou ruim, troncho.

Chris, à época, era uma espécie de chefe dos mecânicos da dramaturgia, na produtora O2, auxiliando roteiristas a consertarem, alinharem e balancearem suas histórias. Depois de ler minhas cento e tantas páginas, mandou um longo e-mail. Em nenhum momento dizia "não gostei", "isso é ruim", "tá errado". Em vez disso, mostrava os defeitos com delicadeza e precisão. Apontava saídas. Sugeria outros caminhos.

Lendo seus comentários, percebi três coisas: que eu não entendia patavina de narrativas audiovisuais, que estava diante de uma profunda conhecedora do assunto e que era possível dizer a alguém que seu trabalho está lastimável de uma forma encantadora.

Não à toa, portanto, Chris Riera se tornou, na última década, um nome recorrente nos créditos de alguns dos melhores filmes e séries nacionais, colaborando com Fernando Meirelles, Cao Hamburguer, Tata Amaral, Karim Aïnouz, entre outros -uma eminência loura pairando, com graça e talento, por trás de muitas tramas, personagens e cenas que você assistiu e assistirá por aí.

Pós-graduada em dramaturgia em Yale e tendo trabalhado em produtoras de cinema nos EUA, trouxe de lá o pragmatismo e know-how que tanta falta fazem por estas plagas. Afinal, apesar de termos produzido alguns ótimos filmes nos últimos 20 anos, o roteiro continua sendo nosso calcanhar de Aquiles.

Um roteiro não é uma obra de arte: é um manual de instruções para uma obra de arte. É relojoaria. Engenharia. Requer conhecimento de engrenagens, cabos e roldanas, balística. Demanda trabalho e paciência de Jó.

F. Scott Fitzgerald, durante um tempo, escreveu para Hollywood. Não deu certo. "Contrataram um escultor para trabalhar com encanamento", comentou seu amigo Billy Wilder. A frase geralmente é citada para menosprezar a indústria cinematográfica, mas prefiro ver nela o contrário: a elevação da hidráulica ao status de arte.

Muito de um roteiro é, sim, encanamento: saber que tubos conectar, em que ângulos, para que a água entre aqui e saia lá, com a temperatura e pressão certas, sem vazar. Isso explica por que são tão poucos os bons roteiristas brasileiros: nesta terra de bacharéis, ninguém quer ser encanador, todos queremos ser escultores. Queremos ouro sem garimpo, brilho sem polimento.

Aqui, portanto, a Chris Riera -essa Giacometti da hidráulica dramatúrgica- era mais importante do que em qualquer outro lugar. Eu torcia muito para que nossos caminhos se cruzassem num futuro projeto e eu contasse novamente com seu luxuoso auxílio. Não contarei. Na vida o roteiro algumas vezes é ruim, troncho, sem graça nem sentido -e este foi o único roteiro que a Chris, apesar de todo seu talento, doçura e generosidade, não pôde consertar.

antonioprata.folha@uol.com.br

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