ANTONIO
PRATA
Anticlímax
Na
vida o roteiro algumas vezes é ruim, troncho, sem graça nem sentido; ele a
Chris não pôde consertar
NA
SITUAÇÃO em que conheci a Chris Riera era bem provável que não houvesse gostado
dela -e assim seria, fosse ela qualquer outra pessoa que não a Chris Riera.
Uns
cinco anos atrás, Chris avaliou um roteiro que escrevi para o diretor Paulo
Morelli. Era minha primeira experiência com longas-metragens e, apesar do
conhecimento e da paciência do Paulo e de sua parceira no projeto, Nina
Crintzs, me ajudando como podiam, meu amadorismo falou mais alto: o roteiro
ficou ruim, troncho.
Chris,
à época, era uma espécie de chefe dos mecânicos da dramaturgia, na produtora
O2, auxiliando roteiristas a consertarem, alinharem e balancearem suas
histórias. Depois de ler minhas cento e tantas páginas, mandou um longo e-mail.
Em nenhum momento dizia "não gostei", "isso é ruim",
"tá errado". Em vez disso, mostrava os defeitos com delicadeza e
precisão. Apontava saídas. Sugeria outros caminhos.
Lendo
seus comentários, percebi três coisas: que eu não entendia patavina de
narrativas audiovisuais, que estava diante de uma profunda conhecedora do
assunto e que era possível dizer a alguém que seu trabalho está lastimável de
uma forma encantadora.
Não
à toa, portanto, Chris Riera se tornou, na última década, um nome recorrente
nos créditos de alguns dos melhores filmes e séries nacionais, colaborando com
Fernando Meirelles, Cao Hamburguer, Tata Amaral, Karim Aïnouz, entre outros
-uma eminência loura pairando, com graça e talento, por trás de muitas tramas,
personagens e cenas que você assistiu e assistirá por aí.
Pós-graduada
em dramaturgia em Yale e tendo trabalhado em produtoras de cinema nos EUA,
trouxe de lá o pragmatismo e know-how que tanta falta fazem por estas plagas.
Afinal, apesar de termos produzido alguns ótimos filmes nos últimos 20 anos, o
roteiro continua sendo nosso calcanhar de Aquiles.
Um
roteiro não é uma obra de arte: é um manual de instruções para uma obra de
arte. É relojoaria. Engenharia. Requer conhecimento de engrenagens, cabos e
roldanas, balística. Demanda trabalho e paciência de Jó.
F.
Scott Fitzgerald, durante um tempo, escreveu para Hollywood. Não deu certo.
"Contrataram um escultor para trabalhar com encanamento", comentou
seu amigo Billy Wilder. A frase geralmente é citada para menosprezar a
indústria cinematográfica, mas prefiro ver nela o contrário: a elevação da
hidráulica ao status de arte.
Muito
de um roteiro é, sim, encanamento: saber que tubos conectar, em que ângulos,
para que a água entre aqui e saia lá, com a temperatura e pressão certas, sem
vazar. Isso explica por que são tão poucos os bons roteiristas brasileiros:
nesta terra de bacharéis, ninguém quer ser encanador, todos queremos ser
escultores. Queremos ouro sem garimpo, brilho sem polimento.
Aqui,
portanto, a Chris Riera -essa Giacometti da hidráulica dramatúrgica- era mais
importante do que em qualquer outro lugar. Eu torcia muito para que nossos
caminhos se cruzassem num futuro projeto e eu contasse novamente com seu
luxuoso auxílio. Não contarei. Na vida o roteiro algumas vezes é ruim, troncho,
sem graça nem sentido -e este foi o único roteiro que a Chris, apesar de todo
seu talento, doçura e generosidade, não pôde consertar.
antonioprata.folha@uol.com.br
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