14
de maio de 2012 | N° 17069
L. F.
VERISSIMO
Relevantes e irrelevantes
Depois
de passar outra tarde inteira estudando e escrevendo num banco duro da
Biblioteca Britânica, Karl Marx teria dito que um dia a burguesia ainda
lamentaria as suas hemorroidas. Marx foi o melhor exemplo da sua própria exortação
aos filósofos, a de que era preciso mudar o mundo em vez de apenas entendê-lo,
e teria mais razão do que a maioria dos intelectuais para achar que seu
trabalho tinha consequência, ou que suas hemorroidas não tinham sido em vão.
Outro
intelectual do século dezenove, Sigmund Freud, também poderia reivindicar a
mesma pertinência para o seu trabalho duro, e a mesma influência na história
humana, mas, enquanto hoje ainda se ouvem alguns lamentos pelas hemorroidas do
Marx – ou pelo menos se discute se o mundo teria sido o mesmo com ou sem ele,
ou com ou sem elas –, a relevância histórica de Freud é pouca.
Antes
que freudianos me mordam, explico que a importância de Freud, como pioneiro e
teórico, ainda é imensa e que suas teses e terapias, mesmo as que hoje estão
ultrapassadas, afetaram a história pessoal de muita gente.
Mas
a História com maiúscula, a história da humanidade como “case” de neurose
coletiva, não tomou conhecimento da inversão freudiana da exortação marxista, a
de que era preciso reinterpretar o mundo para poder entendê-lo, e mudá-lo.
Nenhuma
das descobertas de Freud sobre o inconsciente e o comportamento neurótico,
sobre o homem movido por impulsos que mal conhece, teve o mesmo impacto da
ideia marxista do homem econômico, entregue a leis históricas que mal domina.
Nem
impacto social nem intelectual, pois fora algumas tentativas de juntar Marx e
Freud numa explicação só – num pobre homem atacado por fora pelo determinismo
econômico e por dentro por ele mesmo – e uma ou outra iniciativa de interpretar
a história psicanaliticamente, como fez Norman O. Brown num livro hoje
esquecido, a investigação da humanidade como candidata a um divã não prosperou.
Que
eu saiba. E basta olhar em volta para ver quanta coisa Freud ao menos
explicaria, mesmo que não mudasse.
Quanto
às hemorroidas citadas por Marx, são um símbolo da pretensão de todos nós a
fazer alguma diferença com o que escrevemos. É insuportável saber que o único
efeito de passar tanto tempo neste computador no mundo real seja uma possível
tendinite.
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