27
de maio de 2012 | N° 17082 VERISSIMO
As
aventuras da família Brasil
Chivas é
poder
O
uísque foi a bebida de uma época, e o tilintar das pedras de gelo no copo, seu
som característico
Contam
que, proibido de beber uísque pelo seu médico, o cronista Rubem Braga enchia
com gelo um copo que ficava sacudindo perto da orelha. Assim não tinha o uísque
mas tinha a sua trilha sonora como consolo.
O
uísque foi a bebida de uma época, e o tilintar das pedras de gelo no copo o seu
som característico. O Brasil deve muito da sua música e da sua literatura, do
fim dos anos 1940 até mais ou menos o começo dos 1980, ao Johnny Walker e seus
comparsas. Hoje ainda se bebe uísque, mas ele não é mais o fluido vital de uma
geração, como foi para Tom e Vinicius e como o que faltava no copo do Rubem
Braga.
Uma
história da época. Alguém tinha fama de grande anfitrião, entre outros motivos
porque tinha sempre uma garrafa cheia de Chivas Regal para receber os amigos.
Nem todos os que frequentavam seu apartamento podiam comprar um uísque bom como
o Chivas Regal, um luxo como aquele, e recebiam cada nova garrafa cheia com
“obas” de satisfação.
Que
uísque. Que anfitrião. Que amigo! Até entendiam que o limite, a cada noite,
fosse uma, e só uma, garrafa de Chivas Regal. O que importava, se na reunião
seguinte lá estaria outra garrafa cheinha, para felicidade dos convidados e
maior prestigio do anfitrião?
Deduziram
que o anfitrião tinha um estoque de Chivas Regal. Era isso?
–
Não, não – explicou o anfitrião. – Tenho um fornecedor. Compro regularmente.
“Gastando
uma fortuna”, foi o que passou pela cabeça de todos. Além de generoso, o
anfitrião era um homem de posses e, possivelmente, de influência, talvez um dos
pró-homens da República. Quem tinha sempre uma garrafa cheia de Chivas Regal
para servir aos seus convidados mostrava mais do que bom gosto. Chivas Regal
era poder. Chivas Regal era a marca de um espirito nobre. E a admiração pelo
anfitrião só aumentava.
Até
que um dia.
Um
dia um dos convidados, ao primeiro gole, decretou:
–
Isto não é Chivas.
Abriu-se
uma clareira de espanto. Como? Que audácia. Que acinte. Que falta de educação.
O que o anfitrião iria pensar? O anfitrião apenas sorriu e perguntou:
– O
que é então?
– Ou
muito me engano, ou é Old Cock – disse o outro, citando o nome de um uísque
inferior (o nome verdadeiro não é este, claro) que, diziam, era usado na
limpeza de motores e dava azia terminal.
E o
denunciante contou que, sem ninguém ver, fizera uma pequena marca no rótulo da
garrafa de Chivas esvaziada na reunião anterior. E lá estava a pequena marca no
rótulo da garrafa recém-aberta. A garrafa era sempre a mesma. O anfitrião só
mudava o conteúdo, enchendo-a de uísque barato e mantendo no alto o seu
prestigio.
Que,
claro, acabou – pelo menos no grupo da época – com a revelação de que, durante
todo aquele tempo, ele servira Old Cock ou até coisa pior em garrafa de Chivas.
Hoje
o anfitrião é um conhecido lobista em Brasília, onde continua servindo Chivas
falso. E com sucesso. A maioria dos seus convivas não sabe distinguir Chivas de
Old Cock ou coisa pior. E na política, mais do que qualquer outra atividade
humana, o importante é a aparência.
O
moralista pode ser um sem-vergonha disfarçado, o honesto apenas um corrupto mal
cantado. Basta parecerem que são o que não são. O que vale é o rótulo, não o
conteúdo.
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