domingo, 13 de maio de 2012


RUTH DE AQUINO é colunista de ÉPOCA

A Justiça do amor

Um pai foi condenado a pagar à filha R$ 200 mil de indenização por abandono afetivo. A decisão, inédita, é do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Essa história mexe com sentimentos – e não com reconhecimento de paternidade ou pensão alimentícia. Não deveria pertencer à Justiça, e sim à vida e à consciência de cada um. Como legislar sobre a prática do amor?

É um caso comum. Uma professora de 38 anos, Luciane Nunes, que mora em Votorantim, interior paulista, decidiu há dez anos processar o pai, Antônio Carlos Jamas dos Santos, dono de postos de combustível em quatro Estados, por não ter cuidado dela direito, na infância e na adolescência. Luciane havia nascido de uma longa relação extraconjugal do pai, que durou oito anos.

A mágoa da menina foi agravada por ciúme e rejeição. Os filhos que o pai teve em casamento formal com outra mulher estudaram nas melhores escolas, aprenderam várias línguas. Ela não. Além de uma vida mais confortável, seus meio-irmãos tiveram a atenção paterna em casa. As brincadeiras, as broncas, os carinhos, os conflitos. Ela não.

Luciane cresceu, casou, teve filhos. Mas não superou o ressentimento. Decidiu colocar o pai de castigo numa sala de tribunal. Mostrar publicamente que, como empresário, ele pode ser bem-sucedido e morar em condomínio de luxo. Mas, como pai, embora a tenha reconhecido, não a amou o suficiente. Não a educou. Deixou a tarefa a cargo da mãe. Antônio Carlos conta uma história bem diferente: diz que tentou se aproximar várias vezes da filha, mas a mãe não permitia e era agressiva.

Como encontrar a verdade? Não invejo a juíza Nancy Andrighi, do STJ, que justificou a sentença. “Amar é faculdade, cuidar é dever.” A juíza está certa, não há como discordar. Ela listou algumas obrigações constitucionais da paternidade, “deveres inerentes ao poder familiar”: convívio, cuidado, criação e educação dos filhos. É melhor pensar direito antes de engravidar. Para dar à luz e não às trevas.
A professora que processou o pai por abandono afetivo obteve vitória judicial. Mas não o amor dele

Luciane é hoje uma mulher que conseguiu, após uma década de processo, uma vitória judicial importante. Mas não o amor do pai nem a paz interna. A indenização, fixada inicialmente em R$ 415 mil, foi reduzida à metade. Antônio Carlos diz que recorrerá ao Supremo Tribunal Federal (STF). Se o Supremo julgar e der razão a Luciane, abrirá caminho para uma enxurrada de filhos que não se sentem amados.

Por enquanto, o abandono afetivo não é previsto em lei. Há dois projetos. Um deles propõe detenção de até seis meses para pais acusados de não dar afeto ao filho menor. O outro propõe indenizar por danos morais os filhos e os idosos sem afeto. Quantos velhos são esquecidos em asilos sem receber visita ou ouvir uma só palavra de filhos e netos?
É complicado legislar sobre o exercício do amor e suas subjetividades. Se todos decidíssemos pedir indenização por uma carência temporária ou persistente de afeto, as Varas de Justiça teriam de fechar. Não dariam conta.

O sentimento de abandono nem sempre traduz a realidade. Algumas pessoas acham que amar pressupõe um contato diário. É preciso falar todos os dias. Pessoalmente, pelo telefone ou computador. Há quem se sinta sempre abandonado, mesmo com dezenas de amigos.

O trauma é maior se quem não demonstra amor é o pai ou a mãe. A falta de afeto pode causar profundos estragos emocionais nas crianças e nos adolescentes. Alguém duvida disso, mesmo sem ser psicanalista ou psicólogo?

Para ser pai e mãe, não basta dar nome e dinheiro. Tem de acompanhar, conversar, orientar, ouvir, disciplinar, brigar, beijar, rir e chorar. Ajudar no dever de casa. Consolar, estimular. Não é nada fácil ser pai ou mãe. Todos erramos em alguma medida, por excesso ou falta de zelo. Como somos humanos, dificilmente encontraremos o equilíbrio certo para cada filho, todos diferentes entre si.

Não sei se a mãe de Luciane bloqueou o acesso do pai à filha. Muitas mulheres agem assim, por vingança e ignorância. Mas conheço um número maior de mães que se esforçam, em vão, para o pai se envolver mais na educação do filho. Há homens, separados, que acham que, para ser pai, basta almoçar uma vez por mês com os filhos, compartilhar fotos e trocar uma ideia pelo Facebook, mesmo morando na mesma cidade. Não basta.

A decisão que beneficia Luciane, nas palavras da juíza Nancy, “abre um caminho para a humanização da Justiça”. Talvez abra caminho também para injustiças. Uma indenização não muda sentimentos. Não obriga ninguém a passar a amar. Ao contrário, azeda uma aproximação futura.

Se existe algum benefício na decisão do STJ de São Paulo, é levar as famílias a uma reflexão. Já que amar é cuidar, por acaso sou omisso ou negligente com meus filhos? E com meus pais? O Dia das Mães é um bom domingo para pensar se cuidamos direito de quem mais amamos.

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