MÁRCIO
THOMAZ BASTOS
Em defesa do direito de
defesa
Fora
canibais da honra, gente bem-intencionada me indaga por Cachoeira. Na advocacia,
o desafio fascina: pelos direitos do acusado, enfrentar o Estado
Em 1956,
solicitador acadêmico -o equivalente de então de estagiário-, comecei a advogar.
Exerci
a atividade ininterruptamente, de forma intensa, conquanto modesta, até 2002. Parei
em 2002 e assumi, extremamente honrado, o Ministério da Justiça, no governo
Lula, onde fiquei por 50 meses.
Fiz
uma quarentena, que não me era obrigatória, até final de 2007, quando voltei a
me dedicar ao meu verdadeiro ofício, a prática legal. Ou seja, para terminar
esta exposição cheia de datas, de 1956 a 2012 (56 anos) fui ministro por quatro
anos. Os outros 52, devotei-os à advocacia.
Também
servi à profissão como dirigente da OAB-SP e da OAB nacional. Na vida
profissional, alguns momentos me orgulharam muito: as Diretas Já, a
Constituinte, o julgamento dos assassinos de Chico Mendes, a fundação do
Instituto de Defesa do Direito de Defesa e muitas centenas de defesas que
assumi, tanto no júri como no juiz singular.
No
Ministério da Justiça, a reestruturação da Polícia Federal, a construção do
Sistema Penitenciário Federal, a reforma do Judiciário, a campanha do
desarmamento, a reformulação da Secretaria de Direito Econômico, a implantação
do Sistema Único de Segurança Pública, o pioneiro Programa de Transparência, a
demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol e a fundação da Força Nacional
de Segurança Pública.
Foram
duas fases bem distintas e demarcadas. Numa, o serviço público, trabalho
balizado sob o signo de duas lealdades que nunca colidiram: às instituições e à
Presidência.
Noutra
(advocacia e OAB), primeiro a luta pelo estabelecimento de um Estado de
Direito; depois, a prática profissional, que procurei marcar pelo respeito à ética,
ao estatuto da OAB, às leis e, principalmente, à Constituição brasileira, entre
cujos dogmas fundamentais estão assegurados o direito de ampla defesa, o devido
processo legal, o contraditório, a licitude das provas, a presunção de inocência
e, de forma geral, a proibição dos abusos.
Durante
essa longa trajetória de advogado que vota no PT -não de petista que advoga-,
tive muitas oportunidades de representar clientes vistos como inimigos figadais
do partido. (Não cito nomes, para preservá-los.) Nenhum foi recusado por isso.
Desse
modo, salvei minha independência como defensor, nunca a alienando a quem quer
que fosse. A liberdade do advogado é condição necessária da defesa da liberdade.
Assim
como representei centenas de clientes dos quais nunca recebi honorários,
trabalhei para muitos que puderam pagar, alguns ricos, entre pessoas físicas e
empresas.
Agora
que aceitei representar, no campo criminal, o senhor Carlos Augusto Ramos,
apelidado de Cachoeira, surgem comentários sobre a minha atuação, estritamente
técnica.
Fora
os costumeiros canibais da honra alheia -aos quais não dou atenção nem resposta-,
pessoas que parecem bem-intencionadas questionam se eu poderia (ou deveria) ter
me incumbido dessa defesa, ou porque fui Ministro da Justiça, ou então porque
sou ligado ao PT e ao ex-presidente Lula, ou, ainda, "porque não tenho
necessidade de fazer isso".
A
todas essas dúvidas, a resposta é negativa. Nada me proíbe, nesta altura da
vida -como nunca antes, à exceção do tempo do serviço público- de assumir a
defesa de alguém com quem não me sinto impedido, legal, moral ou
psicologicamente, cobrando ou não honorários.
Entre
tantos casos importantes em que venho trabalhando, dois chamaram muito a atenção
pública: esse e o das cotas na UnB. No primeiro, estou recebendo honorários; no
segundo, trabalhei "pro honorem", ou seja, sem nenhuma remuneração.
Em
matéria criminal, aumenta a responsabilidade do advogado, nos termos do nosso código
de ética: "É direito e dever do advogado assumir a defesa criminal, sem
considerar a sua própria opinião sobre a culpa do acusado". Porque, como
diz Rui Barbosa, indo nas raízes da questão:
"Quando
quer e como quer que se cometa um atentado, a ordem legal se manifesta necessariamente
por duas exigências, a acusação e a defesa, das quais a segunda, por mais
execrando que seja o delito, não é menos especial à satisfação da moralidade pública
do que a primeira. A defesa não quer o panegírico da culpa ou do culpado. Sua
função consiste em ser, ao lado do acusado, inocente ou criminoso, a voz dos
seus direitos legais."
O
fascinante da profissão é o seu desafio. Enfrentar o Estado -tão provido de
armas, meios e modos de atingir o acusado- e ser, ao lado deste, a voz de seus
direitos legais.
Há 12
anos, escrevi neste mesmo espaço um texto com o mesmo título: "Em defesa
do direito de defesa". Não esperava ser convidado a escrever outro, sobre
o mesmo tema, depois de tantos avanços institucionais que o Brasil viveu de lá pra
cá.
MÁRCIO
THOMAZ BASTOS, 76, é advogado criminalista. Foi ministro da Justiça (de 2003 a 2007,
governo Lula)
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