terça-feira, 15 de maio de 2012



15 de maio de 2012 | N° 17070
DAVID COIMBRA

Uma antiga noite porto-alegrense

Esse rapaz me fez lembrar algo improvável. Vou dizer o que é, e você não vai acreditar: é uma escadaria que existe bem ali na Fernando Machado, uma escada íngreme, de pedra, que se ergue da parte baixa da cidade e leva aos píncaros do Alto da Bronze. Parece a escada d’O Exorcista, o mais denso filme de terror de todos os tempos.

Pois todos nós tínhamos assistido a O Exorcista e estávamos ao pé daquela escadaria numa noite antiga. Fazia frio e a névoa envolvia a Fernando Machado, a antiga Rua do Arvoredo, e subia os degraus, lenta e ondulante, exatamente como no filme. Exatamente!

Nós vínhamos de uma festa na casa de uma namorada minha que eu conhecera na Papagaius. Cada um dos meus amigos havia se arranjado com uma amiga dela, o Plisnou com a prima, uma moreninha bem bonitinha, e estávamos todos felizes e nos gabando e comemorando nossas façanhas e então deparamos com a escadaria.

Era assustadora, mas aquela era uma noite de vencer desafios e então alguém propôs:

– Vamos subir?

Vamos, vamos! Subimos, destemidos, e a cada degrau comentávamos a respeito das artimanhas do demônio, de como aquela vizinha que morava no prédio da Sândi havia sido com toda a certeza possuída, dos espíritos malévolos que saem das sepulturas à noite e vagam em busca de corpos vivos onde se homiziar.

Alcançamos o Alto da Bronze ainda falando acerca dessas coisas fantásticas, descemos até a Praça 15 caçoando do Amilton Cavalo, que havia pego uma guria que usava chapa, esperamos meia hora pela chegada de um ônibus que passasse pela Assis Brasil e voltamos para casa combinando de jogar bola nas quadras do Dom Bosco durante a tarde.

Você percebeu do que sentíamos medo, naquela época?

Do Coisa-Ruim, do diabo, de Satanás e seus asseclas, das almas penadas que, não satisfeitas com todas as maldades que cometeram em vida, ansiavam por atormentar os outros depois da morte.

Era por isso que vacilávamos, ao pé da escadaria da Rua do Arvoredo. Hoje não haveria hesitação alguma. Simplesmente não subiríamos, de jeito nenhum. Mas nunca por medo do transcendental, e sim do físico, material e muito mais perigoso ato humano. Sentiríamos medo do ataque de assaltantes que certamente ocorreria, e ocorre, naquele lugar.

Foi disso que esse rapaz me fez lembrar, esse Wangler, do Caxias: de um tempo em que zanzávamos pela madrugada porto-alegrense sem medo da violência urbana, só com o saudável medo do Além. Porque Wangler jogou domingo passado como se jogava naquelas priscas eras: como um ponta.

Wangler fez na direita o que Joãozinho, do Cruzeiro, fazia na esquerda. Joãozinho era um ponta-esquerda que jogava com o pé direito, cortando para dentro, atormentando o marcador. Wangler joga com a bola colada no pé esquerdo, ora investe na diagonal, área adentro, ora voa para a linha de fundo, ora surge no meio para chutar. Foi o personagem da final do Gauchão.

O Inter, desde o Gre-Nal, já era o campeão gaúcho. O Caxias desceu a Serra a fim de não ser humilhado. Fez mais do que isso. Vendeu caro a derrota, valorizou a taça, tornou a festa do Inter mais alegre. E mostrou que algumas coisas que havia antes da Era da Internet ainda têm o seu valor.

O organizador
D’Alessandro amadureceu. Hoje é o dono do time. Sua entrada no intervalo da decisão de domingo mudou o Inter e tornou racional o desenvolvimento do jogo no meio-campo. A idade e talvez até o aumento de salário transformaram D’Alessandro num tipo de jogador utilíssimo: o organizador de time.

Como vencer
Um jogo é ganho por bons jogadores, uma decisão é ganha por homens.

O Inter venceu na imposição, mais até do que no futebol. Venceu porque não admitia perder, submeteu o Caxias, intimidou-o, arrancou a taça de suas mãos.

É assim que se comporta um time vencedor.

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