quinta-feira, 24 de maio de 2012


PASQUALE CIPRO NETO

'A saída é suas'

Ao dizer "nós somos teu", Vaccarezza fez o possessivo "teu" concordar com o possuidor -um suposto "tu"

NOS MEUS tempos de pelada de rua, nos anos 60, lá na minha querida Mooca, a "briga" inicial era sempre pela saída -a escolha do "campo" era secundária. Tirado o par ou ímpar, era comum o derrotado dizer ao vencedor: "A saída é suas". Esse "suas" (erroneamente posto no plural) se explica pelo fato de os falantes verem no possessivo "sua" a ideia de que o possuidor é necessariamente uma pessoa só. Isso leva o falante a empregar "suas", que ocorre aí com o valor de "de vocês".

As gramáticas dizem que no padrão culto da língua os possessivos concordam em gênero e número com a coisa possuída e em pessoa com o possuidor. Em "Sabes bem que tua reivindicação é...", o possessivo "tua" está no feminino singular porque "reivindicação" é substantivo feminino singular; a forma "tua", da segunda do singular, deve-se ao fato de se dar ao possuidor o tratamento "tu" (da segunda do singular, implícita na forma verbal "sabes").

É bom repetir: as observações do parágrafo anterior são válidas quando se toma como referência o padrão formal da língua. Se "tu" desse lugar a "você", o possessivo "tua" daria lugar a "sua" ("Você sabe bem que sua reivindicação é...").

E se substituíssemos "você" por "vocês"? Continuaríamos tendo "sua": "Vocês sabem bem que sua reivindicação...". Bem, isso se resolvêssemos levar a cabo uma das possibilidades descritas pelas gramáticas. Na prática, porém, o que se registra não é isso. Na língua viva, não se registra o emprego de "seu" ou "sua" quando o possuidor é da terceira do plural (vocês, eles, elas, os senhores, as senhoras). O que se registra mesmo é "de vocês", "deles" ou "delas" ("Você sabem bem que a reivindicação de vocês..."). Há ainda o registro de "vosso" ou "vossa", que, no padrão formal da língua, ocorre com "vós" ("Vocês sabem bem que vossa reivindicação...").

Há também o que se ouvia nas peladas da Mooca e ainda se ouve Brasil afora ("A saída é suas..."). Nesse caso, o falante faz "suas" concordar com um "vocês" pensado.

Pois não é que nos últimos dias o deputado federal Cândido Vaccarezza (PT-SP) se encarregou de propagar (ao contrário) os mesmos fundamentos que se veem na frase das peladas dos meus tempos de infância na Mooca? Num torpedo que mandou para o governador Sérgio Cabral (PMDB-RJ), Vaccarezza escreveu o seguinte: "A relação com o PMDB vai azedar na CPI. Mas não se preocupe, você é nosso e nós somos teu".

Elaiá! Seguindo os princípios da concordância com a ideia e não com a forma, Vaccarezza usou "teu", no singular, pensando no governador em si, e não na "coisa" possuída. A "coisa" possuída, no caso, é a base parlamentar, a base aliada, o governo ou seja lá o que for.

Essa "coisa" (que, sob certos aspectos, não passa mesmo de uma "coisa") é nomeada pelo deputado pelo pronome "nós". Ao dizer "nós somos teu", Vaccarezza fez o possessivo "teu" concordar com o possuidor (um suposto "tu" -suposto porque a passagem "não se preocupe" faz pressupor o pronome "você", isso em se tratando do padrão culto da língua).

Bem, o fato é que, por cochilo, distração, desconhecimento ou seja lá o que for, Vaccarezza escreveu "teu" e não "teus", como se esperaria numa mensagem escrita (até a penúltima palavra) no padrão formal da língua...

O mais lamentável disso tudo nem de longe é o cochilo gramatical do deputado; é a desfaçatez, ou seja, é o fato de ficar escancarado que eles são deles, que A é de B, que B é de A, e que nem A nem B nem C nem D nem "coisa" alguma de lá é de nós, é nossa. Em suma, eles não é nosso. É isso.

inculta@uol.com.br

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