PASQUALE CIPRO NETO
'A saída é
suas'
Ao
dizer "nós somos teu", Vaccarezza fez o possessivo "teu"
concordar com o possuidor -um suposto "tu"
NOS
MEUS tempos de pelada de rua, nos anos 60, lá na minha querida Mooca, a
"briga" inicial era sempre pela saída -a escolha do "campo"
era secundária. Tirado o par ou ímpar, era comum o derrotado dizer ao vencedor:
"A saída é suas". Esse "suas" (erroneamente posto no
plural) se explica pelo fato de os falantes verem no possessivo "sua"
a ideia de que o possuidor é necessariamente uma pessoa só. Isso leva o falante
a empregar "suas", que ocorre aí com o valor de "de vocês".
As
gramáticas dizem que no padrão culto da língua os possessivos concordam em
gênero e número com a coisa possuída e em pessoa com o possuidor. Em
"Sabes bem que tua reivindicação é...", o possessivo "tua"
está no feminino singular porque "reivindicação" é substantivo
feminino singular; a forma "tua", da segunda do singular, deve-se ao
fato de se dar ao possuidor o tratamento "tu" (da segunda do
singular, implícita na forma verbal "sabes").
É
bom repetir: as observações do parágrafo anterior são válidas quando se toma
como referência o padrão formal da língua. Se "tu" desse lugar a
"você", o possessivo "tua" daria lugar a "sua"
("Você sabe bem que sua reivindicação é...").
E se
substituíssemos "você" por "vocês"? Continuaríamos tendo
"sua": "Vocês sabem bem que sua reivindicação...". Bem,
isso se resolvêssemos levar a cabo uma das possibilidades descritas pelas
gramáticas. Na prática, porém, o que se registra não é isso. Na língua viva,
não se registra o emprego de "seu" ou "sua" quando o
possuidor é da terceira do plural (vocês, eles, elas, os senhores, as
senhoras). O que se registra mesmo é "de vocês", "deles" ou
"delas" ("Você sabem bem que a reivindicação de vocês...").
Há ainda o registro de "vosso" ou "vossa", que, no padrão
formal da língua, ocorre com "vós" ("Vocês sabem bem que vossa
reivindicação...").
Há
também o que se ouvia nas peladas da Mooca e ainda se ouve Brasil afora
("A saída é suas..."). Nesse caso, o falante faz "suas"
concordar com um "vocês" pensado.
Pois
não é que nos últimos dias o deputado federal Cândido Vaccarezza (PT-SP) se
encarregou de propagar (ao contrário) os mesmos fundamentos que se veem na
frase das peladas dos meus tempos de infância na Mooca? Num torpedo que mandou
para o governador Sérgio Cabral (PMDB-RJ), Vaccarezza escreveu o seguinte:
"A relação com o PMDB vai azedar na CPI. Mas não se preocupe, você é nosso
e nós somos teu".
Elaiá!
Seguindo os princípios da concordância com a ideia e não com a forma,
Vaccarezza usou "teu", no singular, pensando no governador em si, e
não na "coisa" possuída. A "coisa" possuída, no caso, é a
base parlamentar, a base aliada, o governo ou seja lá o que for.
Essa
"coisa" (que, sob certos aspectos, não passa mesmo de uma
"coisa") é nomeada pelo deputado pelo pronome "nós". Ao
dizer "nós somos teu", Vaccarezza fez o possessivo "teu"
concordar com o possuidor (um suposto "tu" -suposto porque a passagem
"não se preocupe" faz pressupor o pronome "você", isso em
se tratando do padrão culto da língua).
Bem,
o fato é que, por cochilo, distração, desconhecimento ou seja lá o que for,
Vaccarezza escreveu "teu" e não "teus", como se esperaria
numa mensagem escrita (até a penúltima palavra) no padrão formal da língua...
O
mais lamentável disso tudo nem de longe é o cochilo gramatical do deputado; é a
desfaçatez, ou seja, é o fato de ficar escancarado que eles são deles, que A é
de B, que B é de A, e que nem A nem B nem C nem D nem "coisa" alguma
de lá é de nós, é nossa. Em suma, eles não é nosso. É isso.
inculta@uol.com.br
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