terça-feira, 22 de maio de 2012



22 de maio de 2012 | N° 17077
DAVID COIMBRA

Os abusos sofridos por Xuxa

Acorajosa, impactante, comovedora revelação de Xuxa de que foi abusada sexualmente durante grande parte da sua infância faz lembrar que nós homens somos feras.

Falo de homem gênero masculino, não da mulher.

Todo trabalho civilizatório consiste em fazer com que nós homens resistamos aos nossos impulsos animais, à vontade de tomar o que o desejo clama, seja um objeto, seja o poder, seja uma mulher, seja a inocência de uma criança. No caso de Xuxa, os homens, vários homens, segundo ela, não se contiveram ante sua beleza de menina, e a atacaram feito lobos.

Xuxa concluiu que muito do seu comportamento adulto deve-se a tais incidentes da infância. Suas dificuldades de relacionamento, suas vacilações amorosas, suas desarmonias com o sexo oposto. O que leva a outra verdade: uma pessoa só pode dar algo que tem e, em geral, o que lhe foi dado emocionalmente foi dado durante a infância.

Uma pessoa só terá amor para dar, se alguém, antes, lhe tiver dado amor. Uma pessoa só terá respeito pelos outros se tiver recebido respeito. Xuxa é insegura emocionalmente porque não lhe deram segurança quando necessitava.

Os assaltantes que são cruéis com as vítimas, os assassinos, os estupradores, os homens que agem como feras, enfim, se comportam dessa forma porque o mundo deles é dessa forma. Foram feitos feras. Uma criança pode ser moldada, a personalidade dela pode ser construída. Lembro agora do pequeno Luis XVII, filho de Luis XVI e Maria Antonieta, rei e rainha decapitados pela Revolução Francesa.

Com a morte do primogênito do casal real, Luis XVII tornou-se o herdeiro da coroa. Ele deveria ser o rei Luis na sequência dos Luíses. Mas, ao estourar a Revolução, foi encarcerado, depois apartado dos pais e entregue ao sapateiro Simon para ser reeducado. O pequeno delfim, com sete anos de idade, chorou durante três dias devido à separação da família. Depois, como todo os seres vivos, se adaptou para sobreviver.

Era espancado todos os dias a fim de esquecer a antiga vida de luxos e aprender como deveria se comportar um cidadão nos novos tempos. Aprendeu. Passou a falar como um menino do povo e a odiar a nobreza. Morreu devido aos maus tratos, aos 10 anos de idade. Seu coração foi arrancado do corpo e conservado em álcool. Não faz muito, os franceses enterraram o coração endurecido pelo tempo, e o fizeram com certa solenidade, como se pudesse haver alguma reparação do mal, 200 anos depois.

Luis XVII viveu a primeira infância inteira como o príncipe que era, e ainda assim os revolucionários conseguiram transformá-lo, a ponto de ele dizer que odiava a própria família. Como fizeram isso? Por meio do abuso. Uma criança não reage ao abuso com revolta, simplesmente porque ela não sabe que está sendo abusada. Mais tarde é que vai tomar consciência disso, quando descobrir que as coisas não tinham de ser como foram.

Xuxa surpreende-se agora com sua falta de reação na época. “Por que não reclamava?”, questiona-se ela, não sem alguma culpa a atormentá-la. “Por que não me queixava para meus pais?” Xuxa não consegue entender, agora que é adulta, que uma criança SIMPLESMENTE NÃO SABE que aquilo é um abuso. A criança não gosta do que está acontecendo, mas não tem ideia de que as coisas não devem ser assim.

É por isso que o crime cometido contra crianças é o mais monstruoso dos crimes. Porque é a mais miserável forma de covardia e de barbárie a que se reduz um ser humano. Forma em geral assumida por nós homens. Nós homens precisamos de muito trabalho para nos civilizarmos. Trabalho diário, incessante, de natureza intelectual e emocional. A educação com amor e respeito é indispensável, mas os canais de sublimação dos instintos também têm o seu papel.

E é aí que entra o esporte. Não é à toa que todos os grandes países do mundo dão prioridade ao esporte. O esporte não é bom apenas para a saúde; o esporte educa. E, o mais importante, atua como sublimador dos instintos, como canal de vazão para ânsias recônditas e baixos sentimentos. O esporte ajuda a fazer de nós menos selvagens, menos bestas. O esporte ajuda a fazer de nós, homens, mais humanos.

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