ANTONIO
PRATA
O retorno do
retorno
De
todos os germes de loucura que um dia possam brotar, há um que tem me
incomodado bastante
Todos
sabem que a barreira entre a sanidade e a loucura é mais fina do que Magipack:
uma esticadinha, uma alfinetada e, pronto, nosso sarapatel de caraminholas pode
entornar sobre a reluzente fórmica da consciência. Convenhamos, se fosse
possível filmar o que passa por sua cabeça numa mera ida à padaria, você seria
amarrado a uma camisa de força antes mesmo de conseguir comer um pão na chapa,
tantas seriam as sandices sem nexo -e, pior ainda, as com nexo- projetadas na
tela do pensamento.
De
todos os germes de loucura que, temo, um dia possam brotar, há um que tem me
incomodado bastante ultimamente. Trata-se de uma loucura antiga que agora
resolveu me visitar de roupa nova. A loucura antiga, que me acompanha desde que
me conheço por gente -desde, portanto, que me desconheço-, é a seguinte. Estou
numa estrada. Avisto uma placa de retorno. Meu medo é pegar esse retorno, fazer
o oito no viaduto sobre a estrada e, do lado de lá, entrar novamente no retorno
para o sentido em que eu vinha.
Chegando
ao ponto de partida, mais uma vez, pegaria o retorno, e ficaria preso nesse
circuito de autorama até acabar a gasolina, até, quem sabe, ser parado pela
polícia com tiros no pneu -mas quem garante que, então, não seguiria a pé,
fazendo sempre o mesmo caminho, entregue à satisfação infantil da repetição?
A
versão atual da fantasia tem o mesmo conteúdo, mas o cenário não é mais uma
estrada, e sim as redes sociais e o e-mail. Estou no meio de um texto e ouço o
bipe de chegada de mensagem. É a placa de retorno, acenando-me, a chamada para
que eu saia da rota. Assim faço: minimizo o Word e abro o Outlook. Se eu logo
voltasse ao trabalho, estaria tudo certo, mas não: decido pegar um outro desvio
e abro o Facebook. Não satisfeito, entro no Twitter. Então, quando estou indo
pro Word novamente, penso: por que não abrir o e-mail, só mais uma vez?
Só
mais uma vez? Será? Quem garante que, terminado o segundo passeio pelo
circuito, eu não vá recomeçá-lo? E re-recomeçá-lo? E re-re-recomeçá-lo? Como
saber se eu conseguirei sair dessa montanha-russa do diabo, dessa inútil roda
de ratinho de laboratório? Há dias em que passo 30, 40 minutos indo de um
programa pro outro, como uma bola de pinball sendo ricocheteada pelos pinos e
barras coloridas da máquina.
Alguns
anos atrás, no metrô, vi um cara atravessar a estação tocando todos os cartazes
de publicidade com o indicador da mão direita. Quando chegou ao fim, parou,
virou-se e percebi em seus olhos vidrados o desespero do abismo. Era a placa de
retorno que ele encarava. Respirou fundo, como se prestes a encarar uma missão
enfadonha, mas incontornável, e cruzou a estação no sentido contrário, tocando
as mesmas placas com o indicador esquerdo.
Acho
que meu Magipack ainda está em boas condições, mas não custa deixar o aviso:
por favor, Andressa, Lívia, Denise, Daniela e Adriano, se um dia minha crônica
não chegar ao jornal, contatem um parente, peçam para um vizinho atirar
garrafas de água mineral e maçãs pela janela do escritório, para o zelador
cortar minha luz. Há grandes chances de que eu esteja preso no retorno do
retorno do retorno do retorno do retorno...
antonioprata.folha@uol.com.br
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