09 de junho de 2013 | N°
17457
O CÓDIGO DAVID
Como julgar um caráter
Agora vou revelar algo que vai
fazer com que eu caia no seu conceito. É o seguinte:
Gosto de Nuvem de Lágrimas.
Refiro-me à música de Chitãozinho
& Xororó.
Ah, jeito triste de ter você
Longe dos olhos e dentro
do meu coração
Me ensina a te esquecer
Ou venha logo e me tire
desta solidão!
Gosto. Sei a letra todinha. Nunca
contei isso antes porque desde a adolescência compreendi a verdade terrível: as
pessoas julgam os outros pelo gosto musical. E talvez até as pessoas estejam
certas. Dois dos maiores filósofos da História, Schopenhauer e Nietzsche,
diziam que a música é a mais elevada de todas as artes e que é a mais nobre
forma de expressão do ser humano.
Claro, quando diziam isso
pensavam em Mozart, Beethoven, Bach e, no caso especial de Nietzsche, Richard
Wagner e Brahms, de quem, aliás, Wagner tinha ciúme. Não sei o que Schopenhauer
e Nietzsche pensariam de Chitãozinho & Xororó e de um cara que gosta de
Nuvem de Lágrimas. Isso me preocupa.
Em minha defesa, diria para
Nietzsche e Schopenhauer que aprecio Mozart, Beethoven, Brahms e Bach, embora
nem tanto Wagner (perdão, Nietz), e que estou desenvolvendo um método de
avaliar o caráter do próximo pelo toque do seu celular, o que não deixa de ser
um critério musical. Mesmo assim, sei que você deve estar decepcionado comigo
por causa da Nuvem de Lágrimas. Paciência. Tinha que fazer essa confissão um
dia. Fiz. Pronto. Saí do armário.
Que alívio.
Conto isso, pejado, por causa da
Legião Urbana. Nos últimos meses, foram lançados dois filmes com temática da
Legião Urbana, Somos Tão Jovens e Faroeste Caboclo. Bem. Fui convidado para
assistir a eles várias vezes, a todo momento alguém me pergunta o que achei dos
filmes e volta e meia colegas da área de Cultura pedem-me depoimentos a
respeito. Por que isso? Tenho cara de quem gosta de Legião Urbana? Acontece que
não gosto.
Até reconheço a qualidade das
letras, mas me irrita aquela gritaria de Jerry Adriani do Renato Russo e, o
pior dos defeitos, eles parecem afetados. Uma gravidade falsa, entende? Os
dramas de um adolescente mal resolvido e bibibi. Por favor! Prefiro a
brejeirice do Leoni cantando que calcula tudo para impressionar a amada, a luz
do final da tarde batendo em seu rosto, a ginga manemolente, o olhar de viés,
mas nada funciona. “As coisas são mais fáceis na televisão”, reclama ele, e
emenda: “Ainda encontro a fórmula do amor!”.
Sim, prefiro quem não se leva tão
a sério. Ou quem se entrega genuinamente ao ridículo do amor, e Fernando Pessoa
já disse que todas as cartas de amor são ridículas, logo, as canções de amor
também haverão de ser. Chitãozinho e Xororó e seus cabelos com mullet são
ridículos, quem gosta de Nuvem de Lágrimas, também, certo, mas pelo menos somos
autênticos.
Serei um
sertanejo?
Disse que gosto de Nuvem de
Lágrimas e de imediato me preocupei. Será que isso significa que sou admirador
de Chitãozinho & Xororó e música sertaneja? Fazendo agora um exame de
consciência, reconheço que gosto daquela As Luzes da Cidade Acesa, ainda que me
inquiete com o que parece erro de concordância.
São apenas duas músicas... Sou um
sertanejo? Não, não quero pensar em mim mesmo como um sertanejo. Vai abalar
minha autoestima.
É diferente, por exemplo, do
Roberto Carlos. O Roberto Carlos tem 50 anos de carreira. A cada dezembro,
lançou um disco. São mais de 600 músicas. Destas, só umas 50 realmente boas. Em
outras palavras: mais de 90% da produção do Roberto Carlos é ruim.
Dito assim, parece que o Roberto
Carlos é péssimo, já que nove entre 10 de suas composições não são boas. Mas
ele não é péssimo; ele é ótimo. Ele é o Rei. Por quê? Porque 50 músicas boas é
muita música boa para uma única pessoa. Logo, ele merece a coroa e, sim, posso
dizer que gosto de Roberto Carlos.
Já os Beatles, quantas músicas
escreveram? Contei 204, desde I Saw her Standing There, feita para uma
namoradinha de Paul que, segundo ele, “tinha só 17 anos e nunca havia vencido
um concurso de beleza”, até a imortal The Long and Winding Road, quando Paul e
John já brigavam e o sonho estava prestes a acabar. Menos de uma década de
carreira, portanto. Pois destas 204, quantas são ruins? Suponho que umas
quatro, embora não as conheça. Portanto, eu realmente gosto dos Beatles. Isso é
garantido. Ufa.
E o Raul Seixas? Juro que gosto
do Raulzito, mas admito que ele só tem umas 12 músicas boas. Quanto ao Paulinho
da Viola, 50% das músicas dele são ótimas e os outros 50% nem tanto, mas sou um
Paulinhoviolista convicto. Ou será que não sou, por causa daqueles 50% nem
tanto?
Maldição. Que crise de
identidade.
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