RUTH
DE AQUINO
Desespero de causa
Diante
de mais de 1 milhão de brasileiros nas ruas contra tudo e todos na quinta-feira,
em 120 cidades, o sentimento comum entre estudiosos era a “perplexidade”. Estavam
perplexos com o tamanho dos protestos, a temperatura da indignação, a falta de
lideranças claras, a nuvem difusa de reivindicações. Minha perplexidade sempre
foi outra. Não entendia como ninguém saía às ruas contra a calamidade nos serviços
essenciais e no baixíssimo IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) brasileiro. Era
como se fôssemos impotentes para mudar as prioridades do país – já que, pelo
voto, só conseguiríamos mudar o ruim pelo menos pior.
Se o
movimento começou com foco em passagens mais baratas – ou gratuitas – de ônibus,
terminamos a semana numa catarse anárquica. Manifestantes e policiais perderam
o controle. Hoje, se uma causa pudesse unir todos os manifestantes, ela seria: “Hay
gobierno? Soy contra”. O passe livre passou a ser o passo livre. A adrenalina
tomou conta de jovens que se sentiam à margem do processo histórico e político
do país, sem voz, sem ilusões, em busca de ideais. Pouquíssimos conhecem de verdade
o que significa a palavra “ditadura”.
O
protesto atual é perigoso para a paz social? Sim. Mas era mais previsível que a
sucessão de estações do ano. Uma hora o brasileiro cordial estouraria – e seria
convocado pelas redes sociais... porque foi assim em todos os países,
independentemente das bandeiras. Não é isso que nós, profissionais da imprensa,
prevíamos?
Há anos
temos denunciado escândalos na educação, na saúde, no transporte, na habitação,
na infraestrutura, nos Três Poderes. Há anos nos indignamos com os impostos
escorchantes, a falta de representatividade dos partidos, a corrupção, a
impunidade e o mau uso do dinheiro público. E nos revoltamos com as alianças
espúrias que permitem a um odioso Marco Feliciano cuidar de direitos humanos e
apoiar a “cura gay”.
O
passe livre passou a ser o passo livre. A adrenalina tomou conta de jovens em
busca de ideais
É triste
e assustador ver a ação de vândalos e arruaceiros que depredam equipamento público,
picham, invadem prédios do governo, quebram lojas, saqueiam, incendeiam. É triste
e assustador ver a ação de policiais de choque que espirram pimenta numa
senhora dentro de uma clínica para ela parar de falar, que jogam bombas em
jovens de mãos ao alto voltando para casa pacificamente com a bandeira brasileira,
que encurralam manifestantes em lanchonetes e jogam gás dentro, que lançam gás
lacrimogêneo dentro de hospitais. Isso é receita de guerra alimentada por ódio.
Quando a revolta escapa ao controle, só favorece extremistas.
É inadmissível
que protestos pacíficos descambem para a intolerância às diferenças. Mesmo que
a maioria dos jovens se diga apartidária, eles não têm o direito de incendiar
bandeiras. Nem têm direito de hostilizar jornalistas ou queimar carros de
empresas de comunicação. Esse comportamento é fascista.
Faz
seis anos que escrevo uma coluna semanal para ÉPOCA. Uso a arma possível: as
palavras. Condenei tantas vezes Renan Calheiros e a votação secreta, que o alçou
ao lugar de seu padrinho José Sarney, com a bênção de Dilma. Sugeri a criação
da Contribuição dos Corruptos Municipais, Estaduais e Federais, a CCMEF. Listei
“10 razões para se indignar”, no fim de 2010 e de 2011. Fiz campanha contra o
voto compulsório.
Perguntei
ao leitor “Quando vamos moralizar o Poder?”. Revoltei-me com a informação de
que 13 milhões de brasileiros, ou 7% da população, não têm banheiro. Defendi
que “precisam sair do escuro as relações entre as autoridades e as empresas de ônibus”.
Afirmei que “não há vergonha na cara de um país que mata e despreza seus velhos
por negligência” nas filas e corredores de hospitais.
E,
depois de escrever tudo isso com liberdade, não posso vestir a camisa da
Editora Globo para cobrir os protestos. Corro o risco de ser linchada por um
grupo minoritário de jovens ignorantes que confundem tudo, uns desmemoriados
que desrespeitam o trabalho de tantos jornalistas investigativos, entre eles
Caco Barcellos. Ou, então, corro o risco de levar uma bala de borracha na testa
ou no olho, disparada por um policial de choque com sede de sangue.
Posso
relevar todos esses atos de estupidez, de lado a lado, sob um único argumento: a
verdadeira democracia pressupõe um exercício ativo da população, uma vigilância
perene sobre as instituições, uma participação atuante de jovens comprometidos
com nossa história. E o Brasil enferrujou em anos de pasmaceira e populismo. Está
na hora de aprender não só a cantar o hino, mas a respeitar as cidades. Está na
hora de as forças da ordem honrarem sua farda e seu poder. Não ataquem
inocentes – os senhores estão sendo filmados.
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