MIGUEL
SROUGI
Depredando a saúde da nação
As
propostas para a saúde feitas pelo governo federal são piores do que os depredadores
soltos pelas ruas, já que destroem vidas humanas
Como
cidadão, fiquei deslumbrado com o clamor que varre a nação. Como médico, e
ligado à saúde, mergulhei em esperanças. Contudo, com a mesma velocidade que
esse sentimento aflorou, fui tomado por uma angústia incontida ao observar as
manifestações oficiais.
Anunciou-se
solenemente que seriam importados milhares de médicos estrangeiros e injetados
R$ 7 bilhões em hospitais e unidades de saúde. Também se propôs a troca de R$ 4,8
bilhões de dívidas dos hospitais filantrópicos por atendimento médico e foi anunciada
a criação de 11.400 vagas de graduação em escolas médicas.
Perplexo,
gostaria de dizer que essas propostas são tão surrealistas que não podem ter
sido idealizadas por autoridades sérias, mas sim por marqueteiros afeitos à empulhação.
Piores do que os depredadores soltos pelas ruas, já que destroem vidas humanas.
A
medicina exercida condignamente pressupõe equipes qualificadas, não apenas com
médicos, mas também com enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais. Exige
instalações minimamente equipadas, para permitir diagnósticos e tratamentos
mais simples.
Necessita
do apoio de farmácias, capazes de prover sem ônus para os necessitados, as
medicações essenciais. Requer processos de higiene, assepsia e certo conforto,
para dar segurança e respeitar a dignidade humana dos pacientes.
O
que farão os médicos estrangeiros nas áreas remotas do Brasil apenas com termômetros
e estetoscópios nas mãos? Irão receitar analgésicos, antidiarreicos e remédios
para tosse, o que poderia ser mais bem executado por qualquer prático de farmácia,
também afeito às doenças regionais. Médicos que nos casos mais delicados nem
atestado de óbito poderão assinar, pois não conseguirão identificar a causa da
infelicidade.
Pior
ainda, como esses médicos conseguirão atuar limitados pela dificuldade de
comunicação, desqualificados para tratar doenças já erradicadas em países sérios,
frustrados por viverem em regiões destituídas de condições mais dignas de existência
para eles próprios, suas mulheres e seus filhos? Certamente tratarão de migrar
para centros mais prósperos, abandonando aqueles que nunca conseguirão
expressar a desilusão.
Não
custa lembrar que muitos países desenvolvidos aceitam médicos estrangeiros,
contudo nenhum deles atua sem ser aprovado em exames extremamente rigorosos,
que atestam a elevada competência profissional.
Igualmente
falaciosa é a proposta de incrementar os recursos para a saúde. Num país como o
Brasil, que gasta apenas 8,7% do seu Orçamento em saúde --muito menos que a
Argentina (20,4%) e Colômbia (18,2%)-- somente mal-intencionados poderão
acreditar que um aporte de recursos de 0,7% corrigirá a indecência nacional.
Também
enganadora é a ideia de se recorrer às instituições filantrópicas. Em situação
falimentar, deixam de pagar tributos porque não recebem do governo federal os
valores justos pelo trabalho. Pelo mesmo motivo, serão incapazes de aumentar o
já precário atendimento.
Quanto
à criação de novas vagas para alunos de medicina, nada mais irrealista. Para
acomodar os números apresentados, o governo teria que criar entre 120 e 150
escolas médicas. Com que recursos? Com que professores? Com que hospitais?
Presidente,
termino pedindo desculpas pela minha insolência. Você, que é digna e tem história,
não pode tergiversar perante o clamor de tantos filhos da nação. Faça ouvidos
moucos ao embuste e combata de forma sincera os malfeitos.
Assuma,
de forma sincera e não dissimulada, a determinação política de priorizar os
recursos para as áreas sociais. Para não ser tomada por angústia infinita ao
cruzar com a multidão, entoando com indignação o canto de Chico Buarque: "Você
que inventou a tristeza/ Ora, tenha a fineza/ De desinventar/ Você vai pagar e é
em dobro/ Cada lágrima rolada/ Nesse meu penar".
MIGUEL
SROUGI, 66, pós-graduado em urologia pela Universidade de Harvard, é professor
titular de urologia da Faculdade de Medicina da USP e presidente do conselho do
Instituto Criança é Vida
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