Crise deriva de má compreensão sobre a
natureza do dinheiro
Economista
apresenta 3.000 de história monetária em 'biografia' do dinheiro
MARTIN
SANDBU DO "FINANCIAL TIMES"
O
que é o dinheiro? Mesmo economistas capazes de usar sem constrangimento expressões
técnicas como "transações repo", "obrigações caucionadas de dívida"
e "relaxamento quantitativo" podem enfrentar dificuldades para
oferecer uma resposta.
O
economista Felix Martin, em "Money: The Unauthorized Biography" (Dinheiro:
a Biografia não Autorizada, ed. Vintage Digital), dá o seu relato sobre esse
assunto.
Para
ele, o dinheiro é para nós aquilo que a água é para os peixes --ocupa posição tão
central em nossa existência que compreendê-lo requer certo esforço conceitual.
A
primeira coisa a apreciar aqui é que o dinheiro envolve mais que moedas e cédulas.
Martin
acredita que uma concepção errônea quanto à natureza do dinheiro --a de que se
trata apenas de uma mercadoria utilizada para executar transações e pode,
portanto, ser tratada como qualquer outro bem de mercado-- é a raiz da negligência
das autoridades econômicas com relação a bolhas e de sua condução inapropriada
das crises financeiras.
O
livro começa com duas ilustrações exóticas do argumento de Martin.
A
primeira é a ilha de Yap, no Oceano Pacífico, cuja moeda era o fei, grandes
rodas de pedra com até 3,6 metros de diâmetro.
Elas
raramente eram movidas para facilitar transações --mais ou menos como acontece
com as modernas contas bancárias eletrônicas, as fei são representações simbólicas
de valor, e podem mudar de dono sem mudar de mãos.
A
segunda é a poesia homérica. A Ilíada e a Odisseia, escreve Martin, são "uma
descrição vívida e detalhada da era imediatamente anterior à invenção do
dinheiro".
Os
dois exemplos servem para ajudar a solapar um dos alvos principais do livro: a
ideia convencional de que o dinheiro foi inventado para superar as dificuldades
práticas do comércio por escambo.
As
economias de subsistência dos épicos homéricos não dispõem de dinheiro mas
tampouco se envolvem em escambos --são transacionados bens saqueados em
guerras, ocorrem trocas de presentes e rituais de compartilhamento em forma de
sacrifícios.
Já o
caso de Yap mostra, de seu lado, que o dinheiro não precisa ser trocado
fisicamente pelos bens comerciados para que desempenhe um papel no comércio.
DIREITOS
Para
Martin, o dinheiro é assim tão simples --e assim tão difícil de definir.
Consiste
de obrigações desincorporadas de relações sociais específicas, ou seja, de
direitos que podem ser livremente transferidos a terceiros. Isso serve mais
obviamente ao meio circulante legal, ou seja, às moedas garantidas por um
soberano.
Mas
formas privadas --vales, sistemas privados de compensação-- também funcionam
como dinheiro, na medida em que possam satisfazer a esses critérios.
Como
Martin mostra, a história do dinheiro é uma narrativa da luta dos governantes
contra os usuários e provedores privados de crédito --acima de tudo, os
banqueiros. De fato, a história de nossa atual crise é a do crédito privado
rompendo seus grilhões.
Martin
estudou os clássicos, além de economia, e seu livro está tão repleto de alusões
literárias e históricas que a história quase se conta sem ajuda. Mas há pouco
de original na definição do autor para o dinheiro como crédito transferível, em
lugar de peças de metal.
Seu
relato das dúvidas sociais e filosóficas sobre a sociedade de mercado, aliás,
deve muito ao livro "As Paixões e os Interesses" (1977), de Albert
Hirschman, publicado no Brasil pela Record.
Não
o afirmo como crítica, porque o trabalho de Martin é uma síntese soberba que
merece ser lida nem que apenas por seu poder de sintetizar, mas a análise
talvez pareça limitada para os leitores que já conhecem o tema.
É simplista
sugerir que a economia como profissão não anteviu a crise (o que é verdade) por
se ver o dinheiro como uma simples mercadoria de troca.
Mas
se a tese de Martin tropeça ocasionalmente, sua narrativa jamais o faz. Como
introdução lúcida e pitoresca aos 3.000 anos de nossa história monetária, o
livro vale seu peso em fei.
MARTIN
SANDBU é editorialista econômico do "Financial Times"
MONEY: THE UNAUTHORIZED BIOGRAPHY
AUTOR Felix Martin
EDITORA
Vintage Digital
QUANTO
R$ 69,95 (formato Kindle; 336 págs)
Tradução
de PAULO MIGLIACCI
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