MARCELO
COELHO
A criação do mundo
Nas
fotos de "Genesis", Sebastião Salgado parece construir o planeta com
as próprias mãos
As florestas
estão desaparecendo, as geleiras derretem, o aquecimento global preocupa, mas
certamente uma coisa não falta no planeta. Refiro-me às fotografias da vida
selvagem.
Nada
contra esse tipo de fotos. São invariavelmente lindas: revoadas de colhereiros,
visões aéreas da Amazônia, índias com filhos na rede e na escuridão.
Quem
pensa já ter visto tudo a esse respeito vai mudar de ideia, provavelmente, se
abrir o novo livro de Sebastião Salgado.
"Genesis"
(editora Taschen) é um volume bem grande e pesado, com fotografias em preto e
branco do artista mineiro, tiradas nos lugares mais remotos do mundo. Lá estão
os índios, os baobás, as geleiras, os platôs e os pinguins.
Mas
o que vejo nesse livro não tem comparação com nada do que eu conhecia. É como
se, até agora, eu tivesse ouvido apenas uma caixa de música e descobrisse, ao
vivo e na frente da orquestra, uma sinfonia de Beethoven.
Em
vez de mostrar uma espécie de pureza idílica e bonitinha, as fotos de Sebastião
Salgado surgem numa erupção de dramaticidade, de agonia, de poder.
Talvez
nosso hábito seja o de pensar as reservas ecológicas como algo de "intocado",
de perfeito em si mesmo, que se espraia na total ausência do homem.
Justamente,
o livro de Sebastião Salgado não se chama "Éden" nem "Paraíso".
O título "Genesis" dá a impressão de que algo está ainda a ser
criado, de que forças gigantescas e, de certo modo, feitas à imagem e semelhança
do próprio homem, estão sem descanso a fabricar o mundo.
A
formação de cacto que nasce no meio de um derramamento de lava, nas ilhas Galápagos,
não parece "estar ali", de forma "natural". É como se
tivesse sido plantada por um jardineiro raivoso e enlouquecido, ainda exausto
do esforço de derreter a pedra e movê-la, aos golpes, pela encosta do vulcão.
Viramos
as páginas, e encontramos na África um grupo de elefantes. O que era bicho,
entretanto, achata-se na foto, ganhando a simetria mineral de uma barreira de
basalto.
O
melhor modo de resumir o impacto dessas fotos seria dizer, acho, que Sebastião
Salgado não parece trabalhar simplesmente com os olhos e a lente da câmera. É como
se, em vez dos olhos, ele usasse as mãos.
Ele
conta, no prefácio do livro, que depois de presenciar cenas de brutalidade
extrema em países como Ruanda, tinha perdido a esperança na humanidade. Na
mesma época (fim da década de 1990), foi cuidar de uma propriedade em Minas
Gerais que, no passado, tinha sido a fazenda de gado de sua família.
Sebastião
Salgado e sua mulher, Lélia Wanick Salgado, dedicaram-se (com sucesso) ao reflorestamento
do lugar. Talvez venha daí a sensação de voluntarismo, de poder, de empreitada,
que as fotos transmitem. O mundo natural surge como resultado de um trabalho
titânico.
E,
nas fotos de alguns bichos, não há como não reconhecer algum tipo de marca
demasiado humana. Um tartarugão nos olha como se fosse James Cagney, num dos
seus papéis de gângster, mandando-nos embora da região sob seu domínio.
A
pata de um lagarto, cinco dedos sobre a pedra, ao mesmo tempo delicada e
agressiva, vive uma inteligência própria --talvez porque sejam especialmente
humanas as proporções do pulso e do antebraço.
Quando
aos índios, vivam eles na América, na África ou perto do polo Norte, a visão de
Salgado supera, sem negá-los, os pressupostos da antropologia. De um lado, em
muitas fotos ele capta o que há de mais "diferente", de mais exótico
possível.
Uma
cultura africana, por exemplo, usa adornos no lábio inferior que fazem os
batoques dos índios brasileiros um enfeitizinho de criança tímida.
Ao
mesmo tempo, Sebastião Salgado não abandona um olhar "estético" e "ocidental"
sobre muitas das pessoas retratadas. A beleza de alguns rostos e corpos é valorizada
ao extremo em suas fotos. Em outra imagem, um grupo de velhos xamãs kamayurá posa
solenemente, contra um fundo do mais absoluto negro --e não há dúvida de que o
fotógrafo se inspirou, aqui, nos retratos coletivos de Rembrandt.
Ocidente,
Oriente, norte, sul: não se trata, em "Genesis", da atitude
paternalista de celebrar nossas "diferenças" ou nossa "fraternidade
planetária". Sebastião Salgado humanizou tudo, na verdade, graças ao
procedimento inverso. Vê o mundo como se estivesse de fora, como se fosse ele
próprio uma força impessoal, cujo amor só se expressa em energia, em criação.
coelhofsp@uol.com.br
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