RUTH
DE AQUINO - 14/06/2013 20h41 -
Atualizado
em 14/06/2013 20h41
O outono da
ignorância
Até
demorou. Não se dizia que os brasileiros eram passivos demais, sem consciência
política? Um povo inebriado por futebol, Carnaval e cerveja, que só se
aglomerava em show, bloco e passeata gay ou evangélica? Agora, uma fagulha, o
aumento das tarifas de ônibus, incendiou multidões. São especialmente jovens.
Como em qualquer lugar do mundo. Entre os que protestam pacificamente com
flores na mão, há os vândalos que, rindo e xingando, depredam o patrimônio,
quebram lojas, incendeiam ônibus. Alguma novidade? Sempre foi exatamente assim,
em Paris, Londres, Buenos Aires ou Istambul.
Os
excessos devem ser repudiados, os vândalos detidos. Mas a reação truculenta das
tropas de choque e as declarações de prefeitos e governadores de todos os
partidos mostram algo preocupante: o poder – no Brasil, como na Turquia – não
faz a menor ideia de como coibir com eficácia protestos que resvalem para a
violência.
Policiais
e políticos igualam-se aos arruaceiros na ignorância, tornam-se delinquentes
por trás de armaduras e gravatas, tacham de ilegítimas todas as manifestações,
não param para escutar, entender ou negociar. O resultado é este: cidadãos
encurralados na volta do trabalho, crianças atemorizadas. Os jornalistas são
feridos pela polícia com balas de borracha, bombas de gás e spray de pimenta
nos olhos. São coagidos e xingados por jovens mascarados e desinformados.
Os
preços sobem, a inflação está em alta, os impostos absurdos não revertem em
saúde, moradia, transporte e educação para a população, os empregos para a
juventude começam a minguar, as empresas demitem em massa sem repor vagas. A
presidente Dilma diz que a economia está sob controle. A farra nos Três Poderes
continua. Ninguém aperta o cinto de couro em Brasília. O noticiário continua
coalhado de mordomias no Legislativo, Judiciário e Executivo.
No
Brasil, o poder não faz a menor ideia de como coibir protestos que resvalem
para a violência
O
jornalista Zuenir Ventura um dia cunhou a expressão Cidade Partida para se
referir à divisão entre asfalto e morro, no Rio de Janeiro. Hoje, está claro
que vivemos num País Partido. O Brasil dos que produzem e trabalham quase cinco
meses só para pagar impostos... e o Brasil dos que mamam nas tetas do Estado, com
aposentadorias vitalícias polpudas e múltiplas, e ainda têm a cara de pau de
discutir o rombo da Previdência.
É
corrupção, nepotismo, promiscuidade, formação de quadrilha nas altas esferas,
desmoralização dos sindicatos que se lambuzam com o melado federal. A casta
superior do País Partido insiste em ignorar o sentimento de vulnerabilidade da
população assalariada.
Com
a ditadura, o Brasil se desacostumou a conviver com manifestações e greves.
Tudo vira sinônimo de anarquia. Estava em Londres em 1979, no “winter of
discontent”, o inverno da insatisfação, que encheu a cidade de lixo e mau
cheiro e derrubou os trabalhistas, abrindo o caminho para Margaret Thatcher.
Trafalgar Square equivale simbolicamente à Praça Taksim, de Istambul – mas com
os bobbies (policiais ingleses) protegendo os manifestantes.
Estava
em Paris no outono de 2005, quando jovens da banlieue (a periferia) invadiram a
Rive Gauche e saíram quebrando tudo, em protesto contra a situação de jovens
imigrantes nos subúrbios. Foram 19 noites de distúrbios na França, 9 mil carros
queimados, 3 mil jovens presos.
Essa
revolta saiu de controle. A “manif” já faz parte da cultura parisiense – quase
como a praia no Rio de Janeiro e o restaurante em São Paulo. Não há fim de
semana em que avenidas não sejam bloqueadas por protestos. As tropas de choque
se organizam, com o objetivo de garantir a passeata, e não de fomentar a
violência.
No
Brasil, o Movimento do Passe Livre é o estopim, ou a parte visível de um
descontentamento que não pode ser minimizado. O péssimo serviço de ônibus,
metrôs e trens, aliado a aumentos nas passagens, é, sim, revoltante. Ouvir de
Sérgio Cabral, Geraldo Alckmin e Fernando Haddad que os protestos “têm
motivação política” causa risos.
É
lógico que protestos sejam políticos. Não existe crime nisso. Ouvir das
autoridades que os manifestantes são mauricinhos causa desconforto. É preciso
ser prostituta para defender os direitos da classe nas ruas? É preciso ser
povão para protestar contra a indignidade dos trens?
Torço
para que os manifestantes expulsem de suas alas os marginais que aterrorizam
exatamente aqueles que mais se servem do transporte público.
Espero
que os governos não mandem às ruas policiais despreparados, brutamontes e
enraivecidos, que atacam pelo prazer da repressão. “Baderna é inaceitável”, diz
Alckmin. Concordo. Mas os piores baderneiros são os armados pelo Estado.
Deslizes policiais e insensibilidade governamental podem nos lançar ao caos.
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