sexta-feira, 2 de novembro de 2012


02 de novembro de 2012 | N° 17241
DAVID COIMBRA

Uma conversa com os meninos surdos

Vou contar algo que aconteceu comigo esta semana, quando fui dar uma palestra para crianças surdas. Eram os alunos da Frei Pacífico, uma escola para surdos que fica nos altos do bairro Santo Antônio. Como entre as minhas incontáveis ignorâncias está a de não saber a língua dos sinais, a Libras, precisei da professora, a Andréia Didó, como intérprete.

Fiquei emocionado ao conhecer os alunos. Eles leram alguns dos meus livros, ou a professora leu para eles, e fizeram trabalhos a respeito. Descobri que surdos desenham muito bem e que são observadores sagazes. Em breves minutos, eles analisam uma pessoa, tiram conclusões sobre ela e criam um sinal para designá-la. Gostei do sinal que me designava.

Há algo sobre os surdos que a maioria dos ouvintes não sabe: é terrivelmente difícil, para um surdo, aprender a ler e a escrever. Porque a nossa escrita é fonética, cada letra representa um som. Aliás, outro dia disse isso para o meu filho, e ele:

– Todas as letras são sons, papai? Todas?

– Sim. Todas. – E o agá? Sacaninha.

Mas a verdade é que as letras representam, sim, sons, mesmo que o agá seja como o arroz e só sirva para combinações. Assim, os surdos precisam atravessar obstáculos do tamanho de cordilheiras para aprender a ler, e o trabalho de professoras como a Andréia é heroico.

Tentei incentivá-los garantindo que, se aprendessem a ler e a escrever com fluência, eles desbravariam mundos novos, mas logo percebi que, ali, eu talvez tivesse mais a aprender do que a ensinar. Descobri, por exemplo, o quanto o preconceito os amassa a cada dia.

Um menino bom de bola desistiu de ser jogador de futebol porque não conseguia entender o treinador, nem ouvir o apito do juiz. Uma menina pediu para uma senhora lhe indicar as horas no relógio, na parada de ônibus, e foi enxotada como se a estivesse assaltando. Outra confessou sentir profunda vergonha quando os ouvintes ficam olhando com intensidade para os surdos que conversam por sinais.

E, finalmente, havia aquele menino. Um garotinho muito inteligente, muito vivaz, muito participativo. Estava instalado na primeira fila, fazia perguntas e, quando soube que eu ia falar de pé, fez questão de pegar a cadeira que fora reservada para mim, só porque era onde deveria sentar-me. Gostei de imediato daquele menino tão espirituoso.

No final do encontro, ao ser acompanhado pela professora pelo pátio da escola, fiz algumas perguntas sobre ele. Soube, então, que o menino é portador de uma síndrome e que está ficando cego. A missão da professora é ensinar-lhe o quanto antes a linguagem dos sinais e o alfabeto, para que ele possa reconhecê-los pelo tato.

Cego, surdo e, por consequência, mudo. Meu Deus. Pensei nas minhas aflições, e senti vergonha.

Na saída, com o coração apertado, insisti:

– Mas a cegueira é irreversível? Não tem cura? Não há nada que se possa fazer?

– Não tem... – disse a professora. – A família já tentou tudo.

Ela abriu o portão e eu o cruzei. Da calçada, fiz uma última pergunta:

– Como ele é no dia a dia?

A professora sorriu e deu a última resposta:

– É um menino muito feliz.

Fui embora, deixando, ao pé do portão de ferro, um pedaço de mim.

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