Antonio Prata
Descuido *
No relacionamento, às vezes a gente se sente como quem
dirige no estrangeiro: errando e sendo xingado
- Maravilha, vaga bem na frente. - Cê não acha mais seguro
deixar no valet?
- Vinte e cinco paus?! - Se a gente sair tarde...
- Prefiro dar o dinheiro pro ladrão que pro valet: pelo
menos o roubo é explícito. Pode deixar, a gente vai embora cedo -ele diz, já fazendo
a baliza.
- Ó lá, hein? São Paulo tá fogo, não quero dar mole de
madrugada...
Ele desliga o carro. Vai abrir a porta, hesita: - Cê tem uma
bala, aí?
- Tenho um Trident, serve? - Serve.
Ela pega o chiclete na bolsa. Vai dar pra ele, hesita:
- Engraçado, cê nunca gostou de bala, chiclete, por que
isso, agora?
- Porque... Ah, essa coisa de vernissage, todo mundo
espremidinho, falando um na cara do outro, sei lá, vai que...
- Que?... Vai que eu tô com um bafinho? - Que nojo! Cê tá com
um bafinho?!
- Não sei, tô? - Sei lá! Não! Por que que cê ia tá com
bafinho?
- Ué, tava no trabalho, um tempão sem comer, reunião... Sabe
aquelas pessoas que têm um bafinho de trabalho? Morro de medo. Daí o chiclete.
Ele vai pegar o Trident: ela fecha a mão -e a cara. Ele
suspira. (Às vezes sente-se no relacionamento como quem dirige num país
estrangeiro: vira e mexe, sem nem perceber, está cometendo infrações, levando
apito do guarda, escutando xingamentos dos outros motoristas.)
- Que foi? - Como, que foi?! Quer dizer que se você tiver
com bafo a sua maior preocupação é com o pessoal na vernissage, não comigo?!
- Não, eu... Olha, eu não acho que tô com bafo! É, é só um
cuidado.
- Cuidado com eles e descuido comigo! Eu sou sua mulher! É comigo
que você tem que se preocupar! "De tudo ao meu amor serei atento antes",
não é esse o verso do Vinicius que você vive citando por aí? Bafinho! Vê se
pode! É o fim do amor!
- Que fim... Escuta, vamos lá pro lançamento?! É perigoso
ficar aqui discutindo dentro do carro.
- Ah! Pra economizar R$ 25 do valet não era perigoso, mas
pra resolver a situação com a sua mulher, é?!
- Que situação?! Não tem situação nenhuma! Eu só pedi uma
bala! Onde cê tá querendo chegar com essa discussão?
- Eu que te pergunto! Onde cê tá querendo chegar com essa
atitude?
- Eu? Eu quero chegar no lançamento, só isso. Será que dava
pra gente ir pro lançamento?
- Se você tá tão preocupado assim com esse lançamento, vai! Vai
que eu vou embora!
- Olha, se eu sair desse carro vai ficar configurada uma
briga, cê sabe, né?
- É bom, mesmo, pra você ficar mais esperto comigo. Quem
ama, cuida! Não é Vinicius, mas é bem verdade! Vai, vai pro seu lançamento!
Ele dá a chave pra ela. Sai do carro. Ela pula pro banco de
motorista e arranca, cantando pneus. Ele olha em volta, não vê nenhum conhecido.
Põe a mão em concha sobre a boca e o nariz. Testa. Parece que não: mas vai que?
Compra um saco de pipocas e entra mastigando, seguro e infeliz.
*Texto escancaradamente inspirado nos diálogos de casal do
Marcelo Rubens Paiva.
antonioprata.folha@uol.com.br
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