30
de novembro de 2012 | N° 17269
DAVID
COIMBRA
Coração
selvagem
Esse
senhor de basto bigode que zanzou feito um fantasma por Porto Alegre dias
atrás, Belchior, esse senhor estranho é um símbolo. Belchior é uma estátua viva
à juventude, à inconformidade, à contestação reflexiva e, também, à
imaturidade.
Você
pode aprender muito, se conhecer Belchior, se prestar atenção no que ele
escreveu e no que ele se transformou. Belchior foi um poeta inexcedível. Repare
neste verso:
“Meu
bem, guarde uma frase pra mim dentro da sua canção.
Esconda
um beijo pra mim sob as dobras do blusão”.
Não
é uma bela imagem, o beijo que ela leva escondido nas dobras do blusão?
Em
outro poema, Belchior tomou emprestada a verve de Olavo Bilac:
“Ora,
direis, ouvir estrelas! Certo perdeste o senso. Eu vos direi, no entanto:
enquanto houver espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer não, eu canto”. Bonito.
Mas
o importante de Belchior não é a beleza das suas composições. O importante é
quando ele confessa que a sua alucinação é suportar o dia a dia. É a alucinação
de todos, certo, mas Belchior não está exagerando sobre si mesmo. Em outra
canção ele diz a um parceiro:
“Se
você vier me perguntar por onde andei
No
tempo em que você sonhava,
De
olhos abertos lhe direi: Amigo, eu me desesperava”.
Ele
se desesperava com o dia a dia, ele se desesperava ao perceber que a juventude
do seu coração era perversa, uma juventude que só entendia o que era cruel, o
que era paixão, porque assim é a juventude.
Belchior
sabia que a felicidade é uma arma quente, mas isso não lhe serviu de consolo. A
fama, o sucesso e o dinheiro não foram suficientes para aplacar a dor
existencial de Belchior. Ele não se conformou. Prova-o o seu futuro, que o
futuro dele está acontecendo hoje.
Prova-o
esse ser humano enigmático que vaga pelo sul do continente meio que sem rumo,
hospedando-se em hotéis sem ter dinheiro para pagá-los, doce e arredio ao mesmo
tempo, parecendo ora aflito, ora sereno, sendo hoje o que foi sempre.
Belchior
ficou congelado nos anos 70. Jamais saiu de sua própria juventude e, suponho,
jamais sairá. Em uma de suas grandes composições há uma frase que diz tudo
sobre ele, uma frase que resume o que é o coração selvagem de quem começa a se
conhecer:
“Ainda
sou estudante da vida que eu quero dar”.
É
isso. Belchior sabia que a vida de uma pessoa é dada a outras pessoas. Mas que
vida ele queria dar? Para quem? Essas eram as perguntas que o inquietavam, e
que inquietam a quem quer que pense. Olhando para o Belchior pálido de hoje
fico pensando se ele, enfim, descobriu as respostas.
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