10
de novembro de 2012 | N° 17249
NILSON
SOUZA
A desinvenção da
roda
Dia
desses resolvi me livrar de algumas revistas lidas e relidas. Tenho uma certa
dificuldade em me desfazer de leituras que foram prazerosas, mas a torre da
mesa de cabeceira, formada também por livros inconclusos, já estava se tornando
ameaçadora. Então tomei a decisão: peguei uma caixa de papelão e coloquei nela
até mesmo alguns impressos que tinha guardado para ler no célebre dia de São
Nunca, que é quando os multiocupados terão tempo livre. Para ter certeza de que
elas não voltariam, levei-as pessoalmente a um asilo de idosos, que aceita
doações desse tipo.
Quando
encostei o carro na porta da instituição, um homem me cumprimentou alegremente
e ficou observando enquanto eu entregava a carga para o funcionário da
recepção. Em seguida, aproximou-se de mim e disse: – Já temos três redes de
televisão aqui e mais uma de rádio.
Pensei
que ele estava se referindo a aparelhos que eventualmente o asilo tivesse
recebido como doação. Respondi “que ótimo!”, já um pouco constrangido por estar
levando simples revistas, enquanto outras pessoas doavam objetos bem mais
valiosos. Quando entrei no carro, o homem apontou para a lateral do veículo e
me alertou:
–
Isso tá acabando! Saltei fora, pensando em pneu furado, ou coisa pior. Tudo
normal. Então, olhei para ele e perguntei:
– O
que está acabando? Ele respondeu sem hesitar: – A roda, isso não vai existir
mais. Nem em avião. Em breve, todos os veículos utilizarão a água para andar.
Só
então me dei conta de que o meu interlocutor estava viajando pela sua rotina de
delírios. São assim os hóspedes dessas casas do esquecimento – os parentes
esquecem-se deles, e eles inventam histórias para dialogar com a solidão. Saí
pensando na observação despropositada e inofensiva, uma espécie de desinvenção
da roda.
Ninguém
sabe exatamente quem inventou esse equipamento extraordinário que impulsionou a
humanidade da biga neolítica à Fórmula-1, com todas as implicações que bem
conhecemos na vida das pessoas, incluindo os engarrafamentos de trânsito.
Talvez esteja mesmo na hora de desinventá-lo.
Sei
que a curiosidade matou o gato, mas já estou juntando mais revistas para
visitar o asilo novamente e inquirir melhor aquele cidadão sobre a sua hipótese
de utilização da água por carros e aviões. Ou será que ele está simplesmente
prevendo um novo dilúvio universal?
Em
breve, neste espaço.
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