21
de novembro de 2012 | N° 17260
DIANA
CORSO
Do tempo das águas turvas
“País
de mestiços, onde branco não tem força para organizar um Ku Klux Klan, é país
perdido para altos destinos.” Publicado na revista Bravo, edição 165, o trecho
acima faz parte de uma carta enviada por Monteiro Lobato para um destinatário tão
entusiasta da eugenia quanto ele próprio. Antes de ser ventilado o racismo de
Lobato, lembro de ter enfrentado um constrangimento pessoal por suas posições.
Tinha
o hábito de ler suas histórias para minhas filhas pequenas. Nos deliciávamos ao
vê-lo trazer para nosso quintal um exército de personagens clássicos.
O
ogro verde Shrek, nascido no século seguinte, foi muito elogiado por mixar e
recriar os contos de fadas. Só que no Brasil já estávamos habituados a essas
paródias graças à irreverência de Lobato. Peter Pan, Gato Félix, anjos e seres
mágicos da mitologia, da literatura e do folclore confraternizam no Sítio do
Picapau Amarelo. Era empolgante essa mestiçagem na ficção, algo que
aparentemente ele não aprovava na vida real.
Quando
apareceram expressões inaceitáveis alusivas à Tia Nastácia, minhas filhas se revoltaram
e perderam o entusiasmo pelo Sítio. Acabaram reincidindo, não há menina
brasileira que tenha crescido alheia às reinações de Narizinho. Aliás, é bom
lembrar que ela casou com o príncipe peixe do Reino das Águas Claras sem nenhum
preconceito! Essa pequena crise doméstica deixou-me claro que hoje banhamo-nos
em outras águas, bem menos turvas.
Nosso
tempo não perdoa o racismo. Hoje é inaceitável a incoerência de valores entre
vida pessoal e obra. A hipocrisia, embora eterna, perdeu espaço. Como valorizar
algo feito por aqueles que a história condenou? É sempre bom lembrar que os
campos de extermínio nazista derramavam sua fumaça fétida sobre as comunidades
que viviam coladas a eles.
Como
era possível àquela gente conviver com esse horror? Condenando Lobato ao
ostracismo, banindo suas obras, julgamos que nada se aproveita de alguém assim.
Seria o mesmo que condenar todo o legado cultural da população da Alemanha e da
Polônia pelo que promoveu. O julgamento é justo e necessário, mas separar o
joio do trigo vale a pena. Principalmente porque as crianças precisam saber que
o autor genial, assim como o cidadão vizinho ao campo, eram pessoas comuns como
nós.
Eles
cometeram muitos erros e, mesmo hoje, nenhum de nós está livre de imitá-los. Covardia
é furtar-se a esse debate com filhos e alunos. A propósito, ontem foi o Dia da
Consciência Negra, data pensada para lembrar as atrocidades que somos capazes
de cometer.
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