17 de novembro de 2012 |
N° 17256
CLÁUDIA LAITANO
A era das possibilidades
Boa parte do prazer da leitura
dos romances de Jane Austen vem do fato de que suas personagens pensam e agem
por conta própria mesmo quando tudo em volta conspira em contrário. Paixões e
gostos pessoais contavam muito pouco naquele ambiente em que o futuro
casamento, a futura ocupação (ou falta de) e mais ou menos todo o resto já
estavam praticamente definidos muito antes de a pessoa nascer.
Ainda assim, as personagens de
Jane Austen amam, desejam, desobedecem – ou seja, vivem – movendo-se nos
pequenos espaços de liberdade disponíveis na Inglaterra do século 19.
Se Elizabeth Bennet, a adorável
protagonista de Orgulho e Preconceito (1813), vivesse nos dias que correm,
talvez fosse afetada por aquela espécie de angústia difusa que parece atingir
boa parte dos jovens de hoje.
Regras, cobranças e papéis
sociais predefinidos já não tiram o sono de ninguém, mas a primeira geração de
adultos criados em um ambiente globalizado e hiperconectado está tendo que
aprender a lidar com a enorme ansiedade gerada pelas possibilidades
virtualmente infinitas de invenção e reinvenção da própria vida (tanto mais
infinitas quanto mais leite ninho o sujeito tomou na infância, porque algumas
coisas não mudaram tanto assim).
Pegue um romance como Barba
Ensopada de Sangue, do escritor Daniel Galera, e você vai encontrar um
personagem tão formatado pela própria liberdade quanto Liz Bennet era pelas
convenções. Como um típico habitante do século 21, o protagonista do livro pode
escolher que espaço a família vai ter na sua vida, onde vai morar e com quem, o
que vai fazer no seu tempo livre e como vai se sustentar.
Pode ainda contrariar o que os
outros esperam dele (sempre alguém espera alguma coisa de nós) com pouca ou
nenhuma consequência. Seu desafio, portanto, é mais ou menos o oposto daqueles
personagens que, no século 19, precisavam inventar um espaço de
individualidade.
Na ausência de uma trajetória
previamente determinada pelo nascimento, pela religião ou pelas convenções,
cabe aos jovens (e aos não tão jovens) protagonistas do século 21 o desafio de
inventar uma causa, pessoal ou coletiva, que ofereça um sentido a suas vidas
tão cheias de opções.
Em um texto publicado ontem no
The New York Times, o articulista David Brooks batiza nossa época de “era das
possibilidades”. Segundo o autor, o mundo tem ficado cada vez menos tolerante a
tudo que parece restringir a liberdade individual – casamento e filhos, inclusive
– e já há pesquisadores estudando como será esse futuro “pós-família” para o
qual podemos estar nos encaminhando. (Entre as muitas implicações dessa
tendência mundial – mais pessoas morando sozinhas, menores taxas de natalidade
–, Brooks cita um recente impacto político: entre os solteiros, Obama venceu
Romney com 62% dos votos, contra 35% do adversário.)
A “era das possibilidades” não
chega sem sua cota de confusão e angústia – é difícil imaginar qualquer tipo de
sociedade sem elas –, mas permite, entre outros avanços, que encaremos
instituições antes consideradas sagradas, como o casamento, como aquilo que na
verdade são: arranjos socialmente determinados, que podem mudar, evoluir ou
mesmo desaparecer. Na “era das possibilidades”, dizer com quem você pode ou não
casar (e mesmo se deve ou não casar) soa tão anacrônico quanto os casamentos
arranjados dos romances de Jane Austen.
Como o pince-nez e as charretes,
algumas ideias são cabras marcadas para morrer.
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