24
de novembro de 2012 | N° 17263
CLÁUDIA
LAITANO
O afeto que se
encerra
A
certa altura do documentário Caro Francis (2008), a viúva Sonia Nolasco lê uma
carta em que Paulo Francis (1930 – 1997) narra a um amigo os últimos dias da
gata Alzira e seu desconsolo diante da morte iminente do bichinho. É um trecho
emocionante do filme, mas é inevitável sentir algum desconforto quando nos
damos conta de que o próprio jornalista, se consultado, provavelmente não teria
autorizado uma exposição tão escancarada da sua intimidade.
Podemos
imaginar Paulo Francis desafiando inimigos, ridicularizando adversários, ou
mesmo saindo no tapa com algum desafeto depois de um ou dois uísques a mais,
mas dificilmente chorando – e menos ainda pela morte de um gato. A sua revelia,
desfez-se em um par de minutos de um filme boa parte da imagem cínica e durona
cultivada ao longo de 40 anos de jornalismo macho alfa.
A
cantora americana Fiona Apple, 35 anos, situa-se mais ou menos no extremo
oposto no espectro da sensibilidade à flor da pele. Dona de olhos tristes e
canções mais melancólicas ainda, Fiona transformou a própria fragilidade na
matéria viva que recheia a maior parte das letras que compõe.
Como
muitos artistas que surgiram a partir dos anos 90, a cantora confessa
inseguranças e desajustes íntimos com a mesma desenvoltura com que um Hemingway
(ou um Paulo Francis...) se vangloriaria das grandes conquistas. Sem medo de
ser infeliz, a cantora é um retrato bastante emblemático da sensibilidade
artística de boa parte da sua geração.
Não
chega a ser surpreendente, portanto, que Fiona Apple tenha decidido cancelar
sua turnê na América Latina (Porto Alegre, inclusive) para ficar ao lado da
cachorra Janet naqueles que podem ser seus últimos meses de vida. Escrita à mão
e postada em uma rede social, a carta comove até mesmo aqueles que nunca
tiveram um cachorro (como eu) ou pertencem àquela parcela da humanidade que se
identifica mais com a independência felina do que com a fidelidade irrevogável
dos cães (idem).
Isso
porque a justificativa de Fiona para o cancelamento da turnê acabou se tornando
menos um testemunho, como tantos outros, a respeito da amizade por um bicho de
estimação do que um tocante depoimento sobre a proximidade da morte de alguém
querido e a forma mais apropriada de viver esse momento.
“Não
serei aquela pessoa que coloca a carreira acima do amor e da amizade. Vou ficar
em casa, ao lado da minha mais antiga e querida amiga, fazendo com que ela se
sinta confortável, confortada, segura, importante”, diz Fiona na longa carta em
que conta como encontrou Janet em um parque, 13 anos antes, machucada e
abandonada, e como as duas tornaram-se inseparáveis nos anos seguintes.
Muitos
fãs devem ter achado esquisito cancelar uma turnê por causa de um cachorro,
muito estranho até mesmo para a excêntrica Fiona. Mas intimamente, amantes de
cachorro ou não, todos sabemos que ela fez a coisa certa. Diante de um afeto
que se vai, não existem fortes nem fracos, cínicos ou frágeis, mas apenas nossa
precária e atônita humanidade – e o tanto de amor que conseguimos aprender a
dividir.
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