quarta-feira, 21 de novembro de 2012



21 de novembro de 2012 | N° 17260
MARTHA MEDEIROS

Casas

Era cedo da manhã e eu estava na sacada do meu apartamento lendo o jornal e pegando um pouco de sol. Foi quando a escavadeira começou o seu serviço. Com um barulho irritante, foi demolindo uma casa onde vivia uma velhinha miúda e briguenta. Não raro eu a via em plena calçada, de roupão, discutindo com algum vizinho. O que será que aconteceu a ela? Espero que esteja bem, mas sua casa morreu de morte matada.

No fim daquele mesmo dia, havia tudo sido posto abaixo. Pilares, paredes, telhado. Do ponto de vista de onde eu estava, a casa me pareceu pequena, uma miniatura insignificante. Mas nunca será insignificante um lugar onde foram criados filhos, onde refeições em família aconteceram, onde Natais foram celebrados, onde amigos foram recebidos e onde houve um jardim. Casas possuem algo de sagrado.

Nunca morei em casa, sempre em apartamentos que serviram de cenário para a história de vida que construí. O da Rua Fabrício Pillar, onde passei a infância, o da Dom Pedro II, onde vivi a adolescência, o da Lavras, onde morei sozinha, o da Mariz e Barros, onde escrevi meus poemas e tive minhas filhas, o da João Obino, onde as criei e comecei a escrever crônicas, e este onde vivo agora, num andar alto em que posso observar boa parte da cidade e o estrago que algumas escavadeiras fazem em volta.

Tenho ótimas lembranças dos meus ex-apartamentos, mas, se os edifícios em que se localizam fossem demolidos, a nostalgia seria repartida entre muitos, não me sentiria atingida de forma especial. Casa tem um status diferente. Cada casa é única. Traz o DNA da família. Não é produto de classificados.

Não moro em casa porque sou prática, gosto de bater a porta e não me preocupar com questões de segurança, além de fazer questão de vista panorâmica. Mas não deixo de admirar as casas de rua, casas passadas de pais para filhos, casas teimosas que se mantêm de pé a despeito das escavadeiras. Toda casa é uma sobrevivente, deveria exibir na porta uma medalha pela resistência.

Esse preâmbulo todo é pra falar do novo livro da Cintia Moscovich, Essa Coisa Brilhante que é a Chuva, onde ela reúne contos primorosos, com um humor muito peculiar e uma humanidade que nos nocauteia. O mais longo, que encerra o livro, narra a história de uma casa e de uma família.

“Uma forma de herança”, chama-se, e comove profundamente, pois traz à tona o que está mais que evidenciado: as escavadeiras andam passando por cima das nossas eternidades. Hoje não preservamos as matrizes da nossa história, viramos cidadãos dispersados, cada um sob seu teto. A solidão, quem diria, também pode ser um subproduto da especulação imobiliária.

A Feira acabou, mas os livros seguem no mercado. Anote: Essa Coisa Brilhante que é a Chuva, de Cintia Moscovich. Se você acha o título longo e difícil de guardar, decore ao menos uma palavra: brilhante.

Nenhum comentário: