CARLOS
HEITOR CONY
Praga, segunda vez
Escrevi
um postal para o Carpeaux e só depois me lembrei que ele já havia morrido
07.11.01
- Praga - Depois de 25 anos, estou de volta à velha Boêmia, primeiro contato
que tive com o mundo socialista nos anos 1960. Era inverno, muita neve, 13
graus abaixo de zero, pegaria tempo pior em Moscou e Murmansk, a caminho de
Havana.
Hoje,
saímos de Veneza às 11h30, fizemos escala em Milão (Malpensa), uma miséria de
atraso, ficamos horas esperando o voo da Alitalia, que estava atrasadíssimo,
serviço péssimo não apenas da companhia, mas do próprio aeroporto, enorme,
labiríntico, perdi o medo dos aviões, mas ganhei pânico dos aeroportos, pelas
conexões, "gates", esteiras, balcões de check-in.
Além
de atrasado, o voo começou mal, com cheiro de querosene dentro da cabine, a
tripulação com extintores de incêndio procurando algum foco de incêndio. Apesar
da primeira classe esquálida dos velhos DC-9, nada comi, preferi dormir, mas não
consegui. Desembarque razoavelmente fácil, troquei US$ 200 por coroas tchecas,
viemos para um bom hotel, parece cenário de filmes dos anos 1930, com Charles
Boyer, Loretta Young, Greta Garbo, Fred Astaire, Melvyn Douglas etc.
Enorme
a suíte, com quarto, sala, escritório, tudo muito limpo, cheirando a novo. E
lustres de cristal tcheco até no banheiro, um lustre colossal, maravilhoso. Caí
duro no sofá da sala, dormi logo, diz Beatriz, que nunca me viu tão cansado,
ela arrumou minhas coisas, quando acordei já estava com a banheira cheia de
espuma esperando pelo banho.
Jantamos
no hotel, está chuviscando, comi uma bela milanesa, bebi uma cerveja local, um
grupo musical tocava canções ciganas ou parecidas. "As Czardas", de
Monti, em destaque.
Compramos
uma excursão para amanhã, a fim de darmos um giro fundamental pela cidade,
depois iremos por conta própria aos lugares que nos interessarem. Quero rever a
velha sinagoga e o cemitério dos judeus, que tanto me impressionaram em 1968. Além
do castelo, que deve ter inspirado Kafka, quero rever a catedral, as duas
bibliotecas de teologia e filosofia, que eu achei a coisa mais bonita que havia
visto até então. Escrevi um postal para o Carpeaux e só depois me lembrei que
ele já havia morrido. Mesmo assim, botei na caixa do correio.
São 23h30,
estou acabando um Rey del Mondo, aqui mesmo no apartamento, com as janelas
abertas, apesar do frio.
08.11.01
- Café no quarto, saímos num tour com um jovem casal alemão e uma guia que
falava mal tanto o francês como o alemão. Giro pela Old City, revi as duas
bibliotecas que tanto me impressionaram, a catedral, alguns bairros típicos,
uma panorâmica da cidade, pegamos um táxi de volta ao hotel.
Lembro
que, em 1967, pensei em ficar por aqui, desistindo do asilo em Havana. Telefonaria
para o Mario Benedetti, em Paris, que estava me rastreando. Ao atravessar uma
das pontes sobre o Vltava, um velho tocava acordeão, uma canção de Smetana que
não identifiquei.
Depois
de amanhã, Beatriz irá para Budapeste num voo às dez horas, e eu irei para Roma
no único voo da Alitalia. Ficarei cinco horas entregue a mim mesmo, com uma porção
de malas. Se houver retardo no voo, estarei frito, pouca gente fala inglês ou francês,
a segunda língua aqui é o alemão.
09.11.01
- Dia de sol e frio em Praga. Demos um pulo na agência da Alitalia para
confirmarmos as passagens. Beatriz segue para Budapeste às dez horas, devendo
estar no aeroporto às oito. Eu vou mesmo para Roma, no voo marcado para bem
mais tarde. Sairei do hotel depois da Beatriz, me virarei sozinho, levando
minhas duas malas e a mala maior da Beatriz. Será uma odisseia, mas tudo bem.
Tomamos
um táxi por três horas, 1.500 coroas, e fui rever a velha sinagoga, o cemitério
antigo dos judeus, com suas pedras desalinhadas. Entre as vítimas tchecas do
Holocausto, cujos nomes estão gravados nas paredes da sinagoga, encontrei um
certo Bloch, Adolf, nascido em 1862.
Não
pode ser o mesmo que conheci, era de 1908 e se chamava Abracha, nasceu na Ucrânia.
Também mandei um postal para ele, que morreu seis anos atrás. Como no caso do
Carpeaux, transfiro o problema para o correio. Quando chegar em Roma, mandarei
um postal para mim mesmo, em Praga. Como endereço, botarei a rua em que Kafka
morava.
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