CLÓVIS
ROSSI
O perigoso autismo de
Cristina
Atribuir
a uma conspiração da direita o megapanelaço de quinta é ignorar os fatos e a
história da Argentina
Entrava
a madrugada de 24 de março de 1976. A presidente da Argentina, Isabelita Perón,
deixava de helicóptero a Casa Rosada, a sede do governo.
Logo
em seguida, toca o telefone no escritório de Flávio Tavares, então
correspondente do jornal mexicano "Excelsior" e
"free-lancer" do "Estadão", para o qual eu trabalhava à
época. Assessores da presidente nos ofereciam uma entrevista exclusiva, na Quinta
de Olivos, a residência oficial.
Olhamo-nos
perplexos. Sabíamos que um golpe militar estava em marcha há dias e tínhamos
todas as razões para crer que o helicóptero não estava levando Isabelita para
Olivos mas para algum dependência militar, como prisioneira. De fato, o golpe
consumou-se minutos depois.
Conto
o episódio para ilustrar a capacidade que têm muitos governantes, em especial
na Argentina, de isolar-se da realidade que os rodeia. Temo que Cristina
Fernández de Kirchner possa estar sendo vítima de idêntico autismo político, a
julgar por sua reação à impressionante manifestação da quinta-feira em Buenos
Aires, com atos menos espetaculares em vários outros pontos do país.
Antes
que os hidrófobos do kirchnerismo me fuzilem, deixo claro que não há termo de
comparação entre Isabelita e Cristina. A atual presidente é uma política de
raça, goste-se ou não dela, e Isabelita nunca passou de uma cantora de cabaré
que chegou à Presidência pelo compartilhamento da cama com o general Juan
Domingo Perón.
Mas
o risco de não entender os ruídos da rua é permanente, para todos os
governantes, de raça ou não. Atribuir a uma suposta conspiração da direita o
megapanelaço de quinta é fingir desconhecer a história. A direita argentina
jamais teve capacidade de mobilização popular. Sempre que ficava descontente,
mobilizava os militares, como o fez contra Isabelita.
A
manifestação de quinta leva todo o jeito de uma repetição dos panelaços
espontâneos de 2001 que forçaram outro presidente, Fernando de la Rúa, a fugir,
também de helicóptero, depois de decretar um estado de sítio tão irrealista
quanto a entrevista que a assessoria de Isabelita nos prometia.
Cristina
não tem o direito de ignorar que a popularidade que lhe permitiu reeleger-se,
em 2011, está sendo crescentemente corroída pelos problemas econômicos visíveis
até a olho nu.
Basta
lembrar que, se o crescimento econômico em seus cinco anos de governo foi de
apreciáveis 5,5% ao ano na média (mais que a média de Lula no Brasil), agora a
economia está praticamente estancada (crescimento de 1,4% de agosto-2011 a
agosto-12). Sem falar na maquiagem da inflação ou nos problemas de energia
elétrica ou nos controles cambiais, que nunca funcionaram na Argentina, ainda
que repetidamente ensaiados.
Cercar-se
de incondicionais e brigar com o resto dos argentinos pode não levar a
presidente a fugir de helicóptero, mas é a melhor maneira de enterrar os
sonhos, dela ou de seus próximos, de uma re-reeleição e de levar o kirchnerismo
a não fazer sucessor em 2015.
crossi@uol.com.br
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