MARCELO
COELHO
Espiões em toda parte
Os
nazistas pintam e bordam em pleno território de Tio Sam; ninguém desconfia de
nada
O
primeiro filme de James Bond apareceu há 50 anos, em plena Guerra Fria. Mesmo
assim, o mais célebre espião do cinema não poderia pertencer aos quadros da
inteligência americana; tinha de ser inglês.
Uma
das muitas razões para isso pode ser intuída quando se assiste aos filmes da
coleção "Hollywood Contra Hitler". A caixa reúne seis títulos feitos
entre 1939 e 1944, no combate propagandístico do cinema americano em oposição
ao regime nazista.
São
filmes bastante simplórios e baratos, apesar de contarem com alguns nomes
famosos na direção (Fred Zinnemann, Edward Dmytryk, Jules Dassin) e no elenco (Bette
Davis, Joan Crawford, Spencer Tracy).
O
mais antigo deles, "Confissões de um Espião Nazista", tem o propósito
de apontar a inexistência de um bom serviço de inteligência a serviço dos
Estados Unidos.
Os
nazistas pintam e bordam em pleno território de Tio Sam; ninguém desconfia de
nada, e passar segredos para a Alemanha parece a coisa mais fácil do mundo. Tanto
assim que um palerma americano acaba se tornando um valioso informante a serviço
de Hitler.
Consegue
passaportes americanos em branco, por exemplo, com uma simples ligação de um
telefone público. Diz ser o coronel Fulano de Tal, e o órgão emissor de
passaportes logo se encarrega de entregá-los no local combinado.
Aliás,
se alguns advogados do mensalão tivessem assistido a esse tipo de filmes,
talvez pudessem melhorar a linha de defesa que adotaram.
Quando
o espião é pego com o envelope, argumenta simplesmente que não sabia qual era o
conteúdo. Que estava apenas fazendo um favor para seus amigos, agindo como um
portador inocente.
Foi
mais ou menos o que declarou Henrique Pizzolato, ex-diretor do Banco do Brasil,
para justificar os mais de R$ 300 mil em dinheiro vivo que chegaram, num
envelope, às suas mãos.
No
filme, quem desvenda a trama nazista é Edward G. Robinson, no papel de um
policial do FBI. "Ora, ora", diz ele ao espião, "o senhor é inteligente
demais para criar uma história tão boba como essa de que estava apenas sendo
portador de um envelope..."
Mas
o espião não era nada inteligente, e o ardil do investigador está em elogiá-lo
o tempo todo. Consegue as informações jogando com a vaidade da vítima, e não
pela ameaça.
Tudo
parece meio difícil de acreditar, mas "Confissões de um Espião Nazista"
se baseia numa série de artigos escritos por um ex-agente do FBI, que acabou
demitido do posto por ter denunciado a fragilidade dos Estados Unidos diante
dos esquemas do Reich.
Quanto
aos ingleses, a prática da espionagem estava longe de ser novidade. As peças de
Shakespeare fervilham de agentes duplos, e um país que esteve em guerra contra
Napoleão certamente encarou Stálin e Hitler como capítulos, sem dúvida mais
perigosos, de uma mesma e longa história.
A
velha Europa contrasta com a célebre "inocência americana" em outro
filme, com roteiro de Dashiell Hammett, baseado em peça de Lillian Hellman.
"Horas de Tormenta", de Herman Shumlin, transporta os conflitos
europeus para a mansão de uma aristocrata americana -o tipo da velhota
desbocada que ninguém gostaria de ter como sogra, mas que é uma delícia de ver
na tela.
Um
conde romeno amigo de nazistas está hospedado ali e descobre um ótimo alvo de
chantagem quando um dos líderes da resistência alemã a Hitler se refugia na
mesma casa.
Os
americanos, assinala o filme, até ali nunca tiveram nada a temer. Mas a
realidade agora é outra -mesmo o assassinato pode ter justificações morais.
Com
toda a discursividade que é inevitável nesse tipo de filme, e apesar dos toques
de melodrama familiar em "Horas de Tormenta", faz bem voltar de vez
em quando a esse universo em que o bem e o mal estavam claramente demarcados.
Vocês,
americanos, são o povo mais supersticioso do mundo, diz um bandido mexicano no
romance "Todos os Belos Cavalos", de Cormac McCarthy.
Acreditam
que o bem e o mal estão dentro das coisas e das pessoas, do mesmo modo que alguém
tem cabelo loiro, do mesmo modo que um carro é vermelho.
Para
nós, mexicanos, continua o bandido, o mal e o bem simplesmente acontecem; estão
em toda parte, à espera de oportunidades.
Se
cabe a comparação, agem como espiões, não como fanáticos. Não deixa de ser uma
visão útil para quem quiser perder a inocência sem se tornar cínico em função
disso.
coelhofsp@uol.com.br
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