ANTONIO PRATA
Batman
& Chaplin
Lorde
inglês, dançarina de cancã. Poucos objetos são mais contraditórios que o guarda-chuva
Dentre
os inúmeros objetos que pertencem ao reino da comédia -como o funil, a tuba, a
gravata borboleta e o saca-rolhas-, tenho um apreço especial pelo guarda-chuva,
esse fiel e destrambelhado companheiro.
Eu
disse fiel, e algum leitor, lembrando-se de todos os guarda-chuvas deixados no
chão de táxis, na porta de restaurantes, na casa de amigos, pode discordar. Não
os acuse injustamente, meu caro: a culpa por essas perdas não foi deles, mas de
sua distração.
Muito
diferente do que acontece com Bics e isqueiros, por exemplo, esses sim seres
nada confiáveis, vagabundos, beatniks que mal entram num bolso e já querem
pular pro próximo, ansiosos por tocar novos dedos, escrever outros textos,
provar diferentes cigarros. Uma Bic ou um isqueiro perdidos estão livres: um
guarda-chuva abandonado é órfão. (Talvez por isso, a-liás, já venha ao mundo de
luto.)
Se
fosse apenas fiel e triste, porém, como um velho mordomo num romance do século 19,
eu não teria nenhum apreço pelo guarda-chuva. O que me encanta nessa improvável
traquitana é que por trás de sua aparente seriedade, por baixo de seu solene
black tie, encontra-se, como eu dizia lá no começo, um humorista.
Você
está andando pela Paulista num dia de chuva. Observa, deslizando pela calçada,
a cordilheira de abóbadas negras, competentemente armadas. Então, aproveitando
uma rajada de vento, um desses comediantes joga o fraque pra cima, pelo simples
prazer de exibir suas anáguas de metal, como uma dançarina de cancã. Um
chacoalhão de seu dono e o pândego volta ao normal, fingindo que nada
aconteceu, com a ironia britânica que lhe é peculiar.
Lorde
inglês, dançarina de cancã, percebe? Poucos objetos são mais contraditórios. Visto
por cima, vestido balonê; por baixo, revolução industrial. Armado,
miniparaquedas; fechado, banana passa.
Sempre
que, em qualquer canto do globo, um guarda-chuva é aberto, põe-se em movimento
o eterno cara ou coroa entre a Ordem e o Caos. Por centenas de vezes, o anel
desliza perfeitamente pela haste, as varetas se erguem, a lona estica: Apolo
venceu.
Um
dia, contudo, um dia em que este caprichoso filho de morcego com bicicleta
acordou com a pá virada, cada ossinho de metal resolve mover-se prum lado; onde
deveria desabrochar o hirto semicírculo surgem mil cotovelos, em vez da perfeição
esférica temos um Bicho da Lygia Clark -e é assim, com uma gargalhada de Dionísio,
que morre um guarda-chuva.
Morre,
mas só individualmente. Coletivamente, apesar de seu óbvio anacronismo (é primo
do 14 Bis, irmão da máquina de escrever, namorou uma suffragette), resiste. E não
ache que são poucas as tentativas de superá-lo. Segundo uma matéria da revista "New
Yorker", o órgão responsável pelas patentes nos EUA tem mais de três mil
registros relativos aos guarda-chuvas e a cada mês chegam tantos outros que há quatro
funcionários só para cuidar dessa área.
No
pasarán!, digo eu. "Eu, passarinho", dirá o guarda-chuva, e,
esquecido no chão, aberto, aproveita a primeira lufada para sair voando -outra
de suas brincadeiras favoritas-, desengonçado como uma galinha, como um gordo
dançando balé, como um gorila brincando nos trapézios, irretocável em sua
harmoniosa desconjunção.
antonioprata.folha@uol.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário