06
de novembro de 2012 | N° 17245
FABRÍCIO
CARPINEJAR
O que separou a família
brasileira
Eu
sei o que desuniu a família brasileira.
O
momento em que ela abandonou o tradicional almoço em casa e procurou a rapidez
do restaurante a quilo.
Quando
ela se desinteressou por completo da residência. Quando trocou a diarista pela
faxineira duas vezes por semana.
Quando
começou a comprar comida congelada e economizar com os talheres. Quando abdicou
do pãozinho da padaria do final da tarde.
Quando
as saídas ao supermercado tornaram-se frequentes. Quando o intervalo do
trabalho diminuiu consideravelmente.
Quando
a vassoura sumiu de trás da porta. Quando o avental desapareceu do seu gancho.
Quando
ter uma horta passou a ser irrelevante. Quando o pai não mais visitou sua
oficina de marcenaria na garagem.
Quando
a tabuleta de bem-vindo acabou dispensada. Quando o capacho se divorciou da
porta.
Quando
a mãe adiou o jardim. Quando a vista de fora superou o carinho da decoração.
Eu
sei eu sei eu sei o instante exato da transformação. Foi na hora em que a gente
parou de vestir o botijão de gás.
Aquele
ato mudou a mentalidade da classe média.
Cuidar
do botijão significava zelar pelos detalhes, pela aparência e ordem doméstica. Mostrava
uma preocupação com o olhar das visitas. Um carinho com os coadjuvantes da
rotina. Um capricho com as gavetas e despensas e forros e fundos e cantos e
quinas.
Não
se podia deixar o gás daquele jeito sujo e engraxado no coração de azulejos da
cozinha. Correspondia a um ultraje, a falta de educação, a ausência de asseio.
Ele
precisava estar agasalhado. Todos os objetos do mundo mereciam uma capa: os
cadernos de aula, o filtro de barro, o liquidificador, os ternos no armário, os
carros na garagem.
Os
objetos tinham que durar: geladeira era para a vida inteira, o fogão era para a
vida inteira, máquina de lavar era para a vida inteira. Não se pensava em
trocar, não se guardava o certificado de garantia, absolutamente dispensável.
Minha
mãe não largava os pedais da Singer nos finais da tarde, elaborava tampas
coloridas para as compotas de doces ou revestimentos para penduricalhos.
É óbvio
que costurava, mensalmente, uma saia de renda para o gás, aproveitando sobras
dos tecidos da cortina.
Eu
achava que o botijão fosse uma irmã.
Meu
irmão caçula já considerava um menino e chamava sua roupa de poncho.
– Mas
é floreado! – eu dizia. – Não existe poncho floreado.
Vestir
o botijão revelava o quanto nos importávamos com o desnecessário.
O
quanto tínhamos tempo livre para amar.
Tempo
livre para amar a família.
Tempo
livre.
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