FERREIRA
GULLAR
A magia da
imagem
Com
o grafite ressurge a pintura figurativa; renascimento se deu nos muros da
cidade
EM
FINAIS do século 19, a linguagem figurativa da pintura -então predominantemente
acadêmica- começa a se desintegrar. Isso se dá nas telas de Cézanne
(1839-1906), que, contrariamente, ao espírito do impressionismo -que diluía as
formas em pequenas pinceladas ("petites sensations")-, constrói o
quadro com manchas.
Ele
dizia que sem a natureza não havia a pintura; não obstante, o que de fato fez
foi mudá-la em pintura, deixando evidente, com suas manchas e pinceladas
soltas, que aquilo não pretendia ser a paisagem real, mas, sim, pintura,
expressão pictórica.
Esse
primeiro passo na direção da autonomia da expressão pictórica provocará a
revolução cubista, que rompeu com a relação natureza-pintura ao fazer do quadro
uma invenção arbitrária, isto é, composição de imagens inventadas pelo artista
e já não copiadas do mundo real.
Daí
para a desintegração da própria linguagem pictórica faltava pouco. Os próprios
inventores do cubismo, Pablo Picasso (1881-1973) e Georges Braque (1882-1963),
se encarregaram disso, chegando mesmo a pôr em seus quadros recortes de jornal,
envelopes de carta, barbante, areia, arame etc. Fazer um quadro não era mais
simplesmente pintá-lo e, sim, compô-lo com todo tipo de coisa do mundo real.
Costumo
dizer que as experiências cubistas -como usar recortes de jornal na tela- são
precursoras do "ready-made" de Marcel Duchamp (1887-1968), que fez
dele um instrumento de negação da arte. Estava aberto o caminho para o que hoje
se chama de arte contemporânea -a substituição da criatividade artesanal do
pintor por objetos e até seres vivos, como gente, urubus, cães, tubarões etc.
Noutras
palavras, a linguagem gráfico-pictórica -que nascera 18 mil anos antes nas
cavernas paleolíticas- foi então abandonada: em lugar de coisas desenhadas ou
pintadas, o artista contemporâneo usa as próprias coisas e seres, como a dizer
que um casal nu dispensa a escultura da "Vênus de Milo", o Davi de
Michelangelo (1475-1564), o touro pintado por Goya (1746-1828). Como tais obras
da chamada arte contemporânea só se tornam arte quando exibidas em galerias ou
museus, eu, de gozação, chamei-as de "realismo high society".
Mas,
veja bem, como não paro de pensar sobre essas coisas, terminei descobrindo
relações entre essa arte contemporânea e o grafite que surgiu nos muros de Nova
York e hoje se espalha por tudo quanto é cidade.
A
sacação é a seguinte: como vimos, de Cézanne a Picasso, chegou-se à
desintegração da linguagem da pintura. Picasso esteve no limite, com suas
figuras pateticamente desfiguradas. Já Marcel Duchamp, radical e niilista,
embora continuasse a pintar, inventou o "ready-made" que, como o nome
está dizendo, dispensa o fazer artístico. Noutras palavras, pintar seria
desnecessário, pois o objeto real diria mais do que sua imagem pintada.
Pura
bobagem. A imagem pintada não diz mais nem menos do que o próprio objeto: diz
outra coisa, porque o que a pintura diz o mundo real não diz. Por isso mesmo,
afirmei certa vez que, se a arte existe, é porque a vida, a realidade, não
basta. A arte não copia, e sim reinventa o real.
Mas
tudo isso é para concluir que o grafite, na verdade, é o renascer da pintura,
que as vanguardas desintegraram a ponto de usar, como arte, a coisa real em
lugar da imagem da coisa. Com o grafite ressurge a pintura figurativa.
E é
curioso que esse ressurgimento se deu nos muros da cidade, não no ateliê, não
na tela, indicando que o grafiteiro não pretendia fazer arte no sentido que a
crítica e o mercado consagraram. Não faz aquilo para vender: o grafiteiro
desenha e pinta para se expressar, para se comunicar num mundo iminentemente
urbano e massificado.
Parece
inspirar-se nas histórias em quadrinhos e, sem compromisso com o mundo
artístico, inventou sua própria linguagem, a partir do instrumento que tornou
possível essa nova pintura mural: o spray. Assim como a música pop nasceu da
guitarra elétrica, o grafite começou como pichação feita com spray.
Mas
a verdade é que, das cavernas aos dias de hoje, a imagem das coisas nos fascina
e, por isso, a arte da imagem não morre. E, como o artista do paleolítico, o
grafiteiro faz renascer nos muros da cidade a magia da imagem pintada.
Nenhum comentário:
Postar um comentário