domingo, 1 de julho de 2012


FERREIRA GULLAR

A magia da imagem

Com o grafite ressurge a pintura figurativa; renascimento se deu nos muros da cidade

EM FINAIS do século 19, a linguagem figurativa da pintura -então predominantemente acadêmica- começa a se desintegrar. Isso se dá nas telas de Cézanne (1839-1906), que, contrariamente, ao espírito do impressionismo -que diluía as formas em pequenas pinceladas ("petites sensations")-, constrói o quadro com manchas.

Ele dizia que sem a natureza não havia a pintura; não obstante, o que de fato fez foi mudá-la em pintura, deixando evidente, com suas manchas e pinceladas soltas, que aquilo não pretendia ser a paisagem real, mas, sim, pintura, expressão pictórica.

Esse primeiro passo na direção da autonomia da expressão pictórica provocará a revolução cubista, que rompeu com a relação natureza-pintura ao fazer do quadro uma invenção arbitrária, isto é, composição de imagens inventadas pelo artista e já não copiadas do mundo real.

Daí para a desintegração da própria linguagem pictórica faltava pouco. Os próprios inventores do cubismo, Pablo Picasso (1881-1973) e Georges Braque (1882-1963), se encarregaram disso, chegando mesmo a pôr em seus quadros recortes de jornal, envelopes de carta, barbante, areia, arame etc. Fazer um quadro não era mais simplesmente pintá-lo e, sim, compô-lo com todo tipo de coisa do mundo real.

Costumo dizer que as experiências cubistas -como usar recortes de jornal na tela- são precursoras do "ready-made" de Marcel Duchamp (1887-1968), que fez dele um instrumento de negação da arte. Estava aberto o caminho para o que hoje se chama de arte contemporânea -a substituição da criatividade artesanal do pintor por objetos e até seres vivos, como gente, urubus, cães, tubarões etc.

Noutras palavras, a linguagem gráfico-pictórica -que nascera 18 mil anos antes nas cavernas paleolíticas- foi então abandonada: em lugar de coisas desenhadas ou pintadas, o artista contemporâneo usa as próprias coisas e seres, como a dizer que um casal nu dispensa a escultura da "Vênus de Milo", o Davi de Michelangelo (1475-1564), o touro pintado por Goya (1746-1828). Como tais obras da chamada arte contemporânea só se tornam arte quando exibidas em galerias ou museus, eu, de gozação, chamei-as de "realismo high society".

Mas, veja bem, como não paro de pensar sobre essas coisas, terminei descobrindo relações entre essa arte contemporânea e o grafite que surgiu nos muros de Nova York e hoje se espalha por tudo quanto é cidade.

A sacação é a seguinte: como vimos, de Cézanne a Picasso, chegou-se à desintegração da linguagem da pintura. Picasso esteve no limite, com suas figuras pateticamente desfiguradas. Já Marcel Duchamp, radical e niilista, embora continuasse a pintar, inventou o "ready-made" que, como o nome está dizendo, dispensa o fazer artístico. Noutras palavras, pintar seria desnecessário, pois o objeto real diria mais do que sua imagem pintada.

Pura bobagem. A imagem pintada não diz mais nem menos do que o próprio objeto: diz outra coisa, porque o que a pintura diz o mundo real não diz. Por isso mesmo, afirmei certa vez que, se a arte existe, é porque a vida, a realidade, não basta. A arte não copia, e sim reinventa o real.

Mas tudo isso é para concluir que o grafite, na verdade, é o renascer da pintura, que as vanguardas desintegraram a ponto de usar, como arte, a coisa real em lugar da imagem da coisa. Com o grafite ressurge a pintura figurativa.

E é curioso que esse ressurgimento se deu nos muros da cidade, não no ateliê, não na tela, indicando que o grafiteiro não pretendia fazer arte no sentido que a crítica e o mercado consagraram. Não faz aquilo para vender: o grafiteiro desenha e pinta para se expressar, para se comunicar num mundo iminentemente urbano e massificado.

Parece inspirar-se nas histórias em quadrinhos e, sem compromisso com o mundo artístico, inventou sua própria linguagem, a partir do instrumento que tornou possível essa nova pintura mural: o spray. Assim como a música pop nasceu da guitarra elétrica, o grafite começou como pichação feita com spray.

Mas a verdade é que, das cavernas aos dias de hoje, a imagem das coisas nos fascina e, por isso, a arte da imagem não morre. E, como o artista do paleolítico, o grafiteiro faz renascer nos muros da cidade a magia da imagem pintada.

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