04
de julho de 2012 | N° 17120
DIANA
CORSO
Contar para não repetir
A
Comissão da Verdade vai investigar e divulgar trechos omitidos de nosso
passado, mas o trabalho desse grupo não tem poder de fazer justiça. O
surgimento da verdade sobre o que ocorreu nos porões da ditadura é sem consequências
práticas. Então, para que dar-se ao trabalho de trazer à tona velhas dores?
Boa
pergunta para um psicanalista, que, por ofício, torna o passado eloquente. Brinca-se
que, numa análise, tudo acaba em Édipo. De fato, “o passado condena”, mas nem só
de gregos parricidas ele é feito. Se as respostas fossem óbvias, não haveria
tratamentos psicanalíticos.
A princípio,
sempre julgamos o mundo externo, “os outros”, culpado pelas nossas mazelas; com
certo percurso, percebemos que tivemos algum papel nesses males. Por fim, impõe-se
rever a própria história: como foi que cheguei até aqui?
Contar
a vida que se teve não vai apagar a experiência de uma família maluca, a sina
de ter nascido no lugar de um irmão morto, a horrível experiência de um abuso,
mortes, falências, ódios. Os fatos do passado não mudam só porque foram
rememorados, mas, lembrados conscientemente ou não, influenciam o presente,
alteram o futuro.
A
eficácia de um tratamento psicanalítico provém de escutar-se contando a própria
história. Uma nova versão de nós mesmos permite nos reposicionarmos frente à vida.
Só assim resolvemos pendências, ressentimentos, nos libertamos de ter que
repetir o mesmo papel.
É assim
com os indivíduos, assim com os povos. Em seu livro 18 Crônicas e Mais Algumas (Boitempo
Editorial), a psicanalista Maria Rita Kehl, membro da Comissão da Verdade,
conta como isso acontece.
Ela
exemplifica, por meio da persistente conivência com a violência policial, que
ainda se tortura e permitem execuções sumárias. Em geral, as vítimas são
pobres, consideradas culpadas sem direito a julgamento. Não seria uma repetição
autorizar-se a punir fora da lei?
Aparentemente,
aquilo que do passado não se elabora vai sendo reencenado, assombra outros
tempos. Na contramão desse silêncio pernicioso, a Comissão da Verdade vai propiciar
que histórias omitidas ou deturpadas sejam faladas, contadas e, com isso,
elaboradas.
Quando
chamada para fazer parte da comissão, Maria Rita perguntou-se: por que eu? Sem
dúvida, por ser psicanalista e escritora engajada. Também porque “O sentimento
do mundo me pega não com a doce melancolia do poeta, mas como um paralelepípedo
na testa”; “a elaboração do texto é uma espécie de cura para o impacto (traumático?)
do acontecimento”, escreve ela, em outras crônicas. Viver, contar. Por isso foi
– muito bem – escolhida.
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