FERREIRA
GULLAR
Unha encravada
O
problema são as normas, seja do banco, seja do INSS, seja do Ministério da
Fazenda, seja do inferno
Finda,
em 1945, a Segunda Guerra Mundial, o mundo passou a viver sob a ameaça de
guerra nuclear. Foram anos terríveis, que levaram muita gente ao pânico, a
ponto de construir abrigos antiatômicos, providos de alimentos para tentar
sobreviver a uma possível hecatombe atômica.
Felizmente,
a guerra nuclear não houve. De fato, dificilmente haveria, uma vez que os dois
lados em conflito possuíam bombas e foguetes suficientes para se liquidarem
mutuamente. Terminaram por instalar, em Washington e Moscou, telefones que lhes
permitiriam evitar o desastre.
O
fim do sistema comunista pôs termo à histeria nuclear. Só quem viveu aqueles
anos pode avaliar o quanto é bom livrar-se de semelhante pesadelo. E pode dizer
a quem não o viveu: você é feliz, cara, e não sabe!
É verdade.
Sucede que o homem é um bicho especial, particularmente porque o que lhe
interessa é ser feliz agora. Se a vida poderia ser pior --como naqueles anos-- pouco
importa. Importam mesmo as aporrinhações de agora. A ameaça nuclear se foi, mas
ficaram outros problemas, menos assustadores, mas, ainda assim, chatos para
cacete.
Um
deles é a burocracia. E você dirá: não dá para comparar uma coisa com a outra. Tem
razão, mas que a unha encravada dói, dói. Claro, é melhor ter unha encravada do
que câncer no estômago, mas bom mesmo é não ter nem uma coisa nem outra. Noutras
palavras: a ameaça nuclear era terrível, mas passou, e a burocracia, não; pelo
contrário, nos aporrinha cada dia mais.
Não
estou querendo dar uma de terrorista, mas às vezes me pergunto aonde vai chegar
a burocracia que silenciosamente continua se infiltrando e tomando conta de
todos os setores de nossa vida.
Você
vai achar que eu exagero, mas a gente só se dá conta do problema quando se vê anulado
por ele.
Um
pequeno exemplo foi o que ocorreu comigo no banco onde recebia minha
aposentadoria. Ia lá todo mês, apresentava meu cartão de aposentado, a carteira
de identidade e recebia o dinheiro.
A
senhora que me atendia já sorria para mim quando eu chegava ao guichê,
reconhecendo-me. Mas eis que um dia esqueci a carteira de identidade e essa
mesma funcionária não me pagou a aposentadoria.
Argumentei:
mas a senhora me conhece, recebo esse pagamento de suas mãos todos os meses. E
ela: "Sim, claro, mas mediante a apresentação de sua carteira de
identidade; sem ela, de acordo com as normas do banco, não posso pagar". E
não pagou.
O
problema são as normas, seja do banco, seja do INSS, seja do Ministério da
Fazenda, seja do inferno. Quando me chega uma carta de qualquer dessas
entidades, entro em pânico: é aporrinhação na certa.
A
burocracia emperra nossa vida e a própria vida do país. Outro dia, vi na
televisão uma reportagem que mostrava toda uma rede de turbinas tipo cata-ventos
instaladas no Nordeste para a geração de energia eólica. Dezenas de turbinas
espalhadas por milhares de quilômetros, que custaram uma fortuna e não produzem
energia nenhuma. Sabem por quê? As linhas de transmissão não foram construídas
porque o processo burocrático, que autorizaria sua instalação, nunca chega ao
fim.
Enquanto
isso, grande parte da energia que consumimos está sendo produzida por geradores
movidos por óleo e carvão, que são caros e altamente poluidores. A produção de
energia limpa, essa a burocracia inviabiliza.
Não
sei se você se lembra do ministro Hélio Beltrão, que foi nomeado com o objetivo
de desburocratizar o Brasil. Criou-se o Ministério da Desburocratização, faz
mais de 30 anos. Eu, como sempre, otimista que sou, vibrei. Pois bem, esse
ministério não existe mais e, em vez da desburocratização do Estado brasileiro,
o que aconteceu foi exatamente o contrário: nada mais burocrático no Brasil do
que o nosso serviço público.
Outro
dia soube de mais uma: um pequeno produtor de cinema conseguiu aprovar pela Lei
Rouanet o projeto para um filme, mas antes de terminá-lo, achou que era melhor
mudar-lhe o nome.
Quem
disse que pôde? A resposta dos burocratas foi a seguinte: se trocar o nome do
filme, perde o financiamento, vai ter que entrar com outro pedido que será aprovado
ou não. Como tinha levado quase um ano para conseguir a aprovação do tal
projeto, desistiu de mudar o nome do filme.
Nenhum comentário:
Postar um comentário