14
de setembro de 2013 | N° 17553
POLÊMICA
Tentar entender não quer dizer
perdoar
Psicanalista
responde a artigo sobre riscos à infância publicado em agosto
Afrase
que dá título a este texto, extraída do filme Hannah Arendt, ocorreu-me ao ler
A Infância Está Sempre em Risco, publicado no Cultura do último dia 10 de
agosto, em resposta a meu artigo Nunca Fomos Anjos, de 27 de julho. Perdoem-me
a ousadia da comparação, mas senti-me como a filósofa quando publicou Eichmann
em Jerusalém: tive a impressão de que a paixão suscitada pelo tema havia
obnubilado a leitura de meu texto.
A
resposta, assinada por Luiza Moura, não se dirigia tanto às palavras ou às
teses por mim colocadas, mas era uma apologia à defesa – ao custo do
pensamento, diria Arendt – de uma infância frágil e supostamente ameaçada por
onde quer que se olhe. Não concordo com essa posição, que considero ingênua, e
tentarei explicar por quê. Mas o artigo me levou a pensar outra questão muito
importante, que precisa ser discutida: qual o lugar da infância na atualidade?
Em
meu texto, interroguei, a partir do filme A Caça, por que o tema do abuso
sexual de crianças desperta uma reação coletiva tão feroz a ponto de levar
suspeita e certeza a serem igualadas, tornando aceitável o linchamento público.
Teci uma consideração a partir da sexualidade infantil, cujas fantasias em relação
aos adultos facilmente colocam estes como abusadores para poderem chegar à
consciência. Admitir-se autor de um desejo proibido, mesmo que fantasioso,
ameaça a estrutura de um sujeito, ainda mais de um que está começando a se
estabelecer.
A
grande virada de Freud – e da psicanálise – foi justamente essa: a descoberta
do caráter traumático da fantasia, que mesmo apenas imaginada tem poder de
levar à neurose. Isso segue atual: é com a narrativa construída sobre os
acontecimentos que lidamos na clínica, não com o que de fato aconteceu ou não –
até porque um fato é inacessível à percepção de forma unívoca, como pretende a
ingênua ideia de objetividade.
A
proteção à infância pode ser relativamente recente, mas está fortemente
enraizada no discurso social contemporâneo. Como brincou Jô Soares com um padre
midiático que levou a seu programa uma camiseta que dizia “Todos contra a
Pedofilia”: e por acaso alguém é a favor?
Parece-me
muito mais interessante pensar por que, apesar das conquistas de direitos e
lugares em relação à infância, segue-se levantando essa bandeira como se a
fragilidade estivesse colocada apenas na infância. Situar de um lado uns como
vítimas a serem protegidas e outros como algozes a serem execrados é valer-se
de uma lógica demasiado pobre para a investigação da complexidade da condição
humana, toda ela sempre frágil, como nos mostra de sobra a História.
Se o
passado pode dar suporte à ideia de uma criança-dejeto negligenciada, abusada e
esquecida (condição que segue existindo para muitas crianças), o discurso atual
a situa em outro extremo: é idealizada, exaltada, fetichizada. Reserva-se à
infância nada menos do que o direito e o dever à felicidade absoluta, qualquer
imposição de autoridade é tomada como autoritarismo, qualquer forma de sofrimento
deve ser evitada, negando-se o fato de que algo de sofrimento é condição para
tornar-se humano.
A
exaltação de uma ideia de infância, que erige a criança como fetiche,
escamoteia o lugar de dejeto em que as crianças ficam situadas, impossibilitadas
de carregar o narcisismo dos adultos. Segue-se, com isso, a lógica binária do
bom-ruim, certo-errado, que seduz por evitar a via mais trabalhosa de encarar a
complexidade da existência e a insustentabilidade das respostas maniqueístas.
“A infância” em si não tem essência, ela é produto do que se faz e se fala
dela, e isso nunca é algo simples e unívoco.
Um
psicanalista precisa dar ouvidos aos efeitos dos discursos que circulam na
coletividade sobre a subjetividade de uma época, é esse seu trabalho. A clínica
de hoje nos revela, entre os sintomas mais comuns das crianças, os efeitos
nocivos de uma superproteção que aposta na vigilância constante e na evitação
das frustrações como garantia de uma infância tranquila. Em nome da proteção da
infância, a própria psicologia cometeu falhas graves, ao conferir efeitos
traumáticos a proibições e frustrações, deixando pais de mãos atadas diante de
pequenos cada vez mais tiranos por não terem encontrado nos adultos contenção
para suas paixões.
Não
deixa de ser paradoxal que, em tempos nos quais tanto se defendem as crianças,
tão pouco lugar de fato se dê ao que se convencionou chamar de infância.
Fala-se muito das crianças, mas o que se faz com elas de fato? Agendas lotadas
de atividades tomam espaço ao ócio necessário à fantasia e ao brincar criativo;
sintomas de sofrimento psíquico – especialmente os que incomodam – são tomados
como patologias a serem corrigidas com medicamentos; pais têm dificuldades para
abrir mão de suas atividades individuais para estar com os filhos.
É
constante a queixa da “falta de limites”, que esquece que vivemos em tempos nos
quais não se toleram muito bem os limites: quer-se gozar sempre e a qualquer
custo, a frustração não é bem recebida não apenas pelas crianças. Basta ver a
reação infantil de consumidores quando não têm seus desejos atendidos na hora e
da forma que querem.
Tentar
entender por que nos mobiliza tanto a fantasia em torno da pedofilia não é
justificar, acusar ou defender o ato do pedófilo. Tentar entender é buscar a
raiz das paixões inconscientes que nos movem, a despeito dos discursos que
construímos para tentar conferir um verniz mais brilhoso às contradições que
nos constituem. Algo que desperta grandes paixões, nos ensina a psicanálise,
diz sempre algo de nós mesmos do qual não queremos saber. Por isso analisá-las
é doloroso: abala nosso narcisismo, que procuramos manter intacto a qualquer
preço, inclusive o da ignorância.
Hannah
Arendt passou a vida tentando entender o mal, e o julgamento de Eichmann a
deparou com uma descoberta assustadora: um dos maiores responsáveis pelo
genocídio nazista era um burocrata que havia renunciado ao pensar,
comprazendo-se em ser um instrumento da máquina. Talvez esteja aí um dos
maiores perigos que sempre ameaçam a humanidade, inclusive as criancinhas: a
tentação a deixar-se levar pelas paixões acéfalas, furtando-se ao exercício,
humano por excelência, do pensamento.
POR
PAULO GLEICH JORNALISTA E PSICANALISTA
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