22 de setembro
de 2013 | N° 17561
MARTHA MEDEIROS
A graça da coisa
Tem quem não consiga
enxergá-la de jeito nenhum, o que para mim é o mesmo que nascer sem
um pé ou sem uma orelha. Quem não vê a graça da coisa, vive com
um pedaço faltando. Nada que impeça o sujeito de acordar,
trabalhar, viajar, mas é chato.
A graça da coisa está
em quase tudo, só que é preciso ter um olhar aberto e curioso para
percebê-la, pois nem sempre ela fica evidente. Às vezes, exige
leitura de entrelinhas, bom manejo da ironia, benevolência com o
sarcasmo. É onde está a graça da coisa.
Mas, por sorte, ela não
costuma ficar escondida. É até bem exibida.
Um filme B, daqueles que
é puro lixo, pode se tornar cult se for assistido sem emburramento
por uma plateia a fim de diversão. Um amigo resolve colocar os pés
na cozinha pela primeira vez e o resultado é a pior massa grudenta
da história. Que tal um sarau lá em casa para a gente cantar as
músicas de acampamento dos nossos 16 anos? Sim, ao violão, todos
bem desafinados.
Ela ronda por aí, nas
aparentes roubadas que se tornam inesquecíveis por motivar tantas
gargalhadas.
O que impede a graça da
coisa de circular mais livremente é o excesso de seriedade que tomou
conta do mundo. Esse tal de politicamente correto, então, é um
inimigo declarado da graça. E os que não se desapegam do próprio
ego também. Eles ficam de um lado, se achando, e ela fica de outro,
boquiaberta: qual o sentido de se dar tanta importância?
A graça da coisa está
justamente nas desimportâncias.
Quanto menos obsessão
por elogios, por cargos e por poder, mais livre ficamos para reparar
nas pequenas nuances por trás das afetações. Em tudo na vida há
uma centelha de inocência que corrompe nossa rigidez e permite a
entrada de uma alegria descompromissada e renovadora. A graça da
coisa não tem assento reservado em camarote Vip nem lugar no pódio
dos campeões, ela é simplesmente a piada espontânea surgida nos
bastidores.
Há que se zombar da vida
maluca que levamos e procurar a graça da coisa em nossas fracassadas
investidas amorosas, nos erros em que nos viciamos, nas discussões
de relação que sempre se repetem, nas tentativas de aparentarmos
sabedoria, nas rugas que tentamos suprimir puxando a pele com as mãos
em frente ao espelho, em nossos defeitos favoritos, nas reprises das
brigas familiares, no nosso saudosismo meio brega, no nosso
vocabulário do tempo do onça.
Em tudo há uma graça
infantil, uma consciência comovente das nossas impossibilidades. É
só desempinar o nariz.
A graça da coisa é o
título do meu novo livro de crônicas, que autografarei no próximo
sábado, dia 28, das 17h às 19h, na livraria Saraiva do Shopping
Moinhos, em Porto Alegre. Se puder, apareça.
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