segunda-feira, 16 de setembro de 2013


16 de setembro de 2013 | N° 17555
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA

A dama do perfume

Vês estes campos em cujo horizonte já avança a cidade que outrora foi pequena? Vês estas colinas em cujo topo se erguem duas ou três chaminés e onde antes só havia a voz do vento compondo sua música ancestral? Vês aquele último trecho de mata, que em outra época foi uma grande floresta habitada por pássaros sem nome? Pois foi aqui que aconteceu.

Aconteceu nesse tempo muito anterior de que te falo, com um homem que não conheci. Tudo aqui era diverso, exceto por esta grande casa, que então se erguia solitária, num mudo desafio à paisagem. Tudo era diverso, descontando as figueiras que têm dois séculos e que já então se elevavam sobre uma vasta extensão de sombra.

O homem se havia refugiado nesta casa tão logo finda uma ida guerra e seus sonhos se povoavam ainda de batalhas e por vezes despertava em meio à treva como se as vozes dos mortos o chamassem.

Foi numa dessas insônias que sentiu o perfume que vinha de nenhuma parte e, com um castiçal, foi percorrendo cada lance da grande casa, o salão deserto, os quartos vazios, a escadaria em que se viam as marcas de um fogo desde sempre contido, a peça ao alto, sobranceira a tudo, onde numa parte esquecida de sua existência havia composto seu único poema. E então o perfume desapareceu.

Aquilo se reprisou por outras noites e outras insônias e novas guerras e batalhas povoadas das vozes dos mortos e o homem já não dormia, inquieto, perguntando se não era ela que então lhe voltava, mas não ousava crer que, há tanto tão perdida em seu passado, lhe pudesse retornar, já que não havia mais esperança habitando seu mundo e sua alma.

– Como será ela agora? – pensava, e tornava a andar pela casa deserta como um náufrago em fero mar, perdido o lenho, e buscava lenimento em reinventá-la, nua e sua, no quarto da cama com dossel de idas idades.

Teria olhos azuis, ou garços, ou mel, a senhora de todos os seus desejos, a que agora lhe roubava as noites com seu perfume e o sono com suas lembranças? E o homem não encontrava respostas para esse claro enigma e a chama do castiçal se desvanecia em suas mãos com a alba.

E, uma noite, mais forte lhe veio o perfume e ele abriu a porta do quarto da cama com dossel e lá estava ela, enovelada em sua pele alva e em seus cabelos dourados, e um ao outro se deram, e assim os acharam, muitos anos depois, extintos, abraçados em desejos antes interditos, em infinitos jogos de entrega e posse, que foi quando esta lenda verdadeira principiou.


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