08 de setembro
de 2013 | N° 17547
VERISSIMO
Os fantasmas
Armas químicas são
produtos do engenho humano, como qualquer outra arma. São mais
repugnantes porque associamos química à vida e não à morte,
apesar de todos os venenos que ela produz. Mas o universo moralmente
neutro e sem remorsos em que elas são desenvolvidas e usadas é o
mesmo.
Mikhail Kalashnikov
criou o mais usado fuzil automático do mundo, o AK-14. Não sei se
já morreu, mas vivia uma aposentadoria tranquila nos Urais, cercado
pelas filhas. Fora a surdez, resultado dos anos testando armas, não
ficou com nenhuma sequela do seu trabalho. Certamente nenhum remorso.
Orgulhava-se do que tinha feito pela pátria.
A simplicidade e a
eficiência do AK-14 foram responsáveis pela sua adoção universal
depois do aparecimento do primeiro protótipo, e ele chegou a ser o
produto mais exportado da União Soviética. Se foi usado em guerras
sujas, massacres e assassinatos em todo o mundo, inclusive na Rússia,
isso não era da conta de Mikhail, que só fez o seu trabalho. Nenhum
fantasma shakesperiano perturbou o seu sono nos Urais, como os
fantasmas que visitaram Ricardo III antes da sua batalha final para
lhe dizer “Desespere e morra”.
J.Robert Oppenheimer
foi visitado por milhares de fantasmas. Depois do triunfo do programa
do qual ele era o diretor científico, com as explosões atômicas
bem sucedidas em Hiroshima e Nagasaki, ele festejou alegremente com
sua equipe. Depois teve uma crise de consciência e uma
transformação.
Ele e a equipe não
tinham apenas feito seu trabalho e criado uma arma eficientíssima,
com brilhantismo. Tinham dado à luz um monstro inédito no mundo e
provocado a mais radical intervenção da ciência na vida humana
desde que esta existia. Isto e os mortos assombraram o resto da vida
de Oppenheimer. Ele se opôs à construção da bomba de hidrogênio
e foi considerado um pouco penitente e filosófico demais para
continuar à frente do programa nuclear americano, sendo substituído
pelo mais pragmático Edward Teller. “Let me sit heavy in thy
soul”, que eu pese na sua alma, diziam os fantasmas vingativos de
Ricardo. O maior feito da ciência na História pesou na alma de
Oppenheimer até o fim.
Sarah Winchester
conseguiu driblar os fantasmas. Ela era a viúva de William
Winchester, filho do fabricante do fuzil Winchester, “o rifle que
conquistou o Oeste”. Além de usado para eliminar coiotes, índios
e outros entraves à ocupação do Oeste bravio, o Winchester – uma
arma tão revolucionária, na sua época, quanto a máquina de matar
de Kalashnikov – chegou ao mercado pouco antes de começar a Guerra
da Secessão americana, que fez a fortuna da família.
Sarah e William tiveram
uma filha, Annie, que morreu ainda bebê, começando o que Sarah
identificou como uma danação sobre a sua família. Pouco depois,
William também morreu, de tuberculose, confirmando para Sarah que o
nome Winchester vinha carregado de pragas e maus presságios.
Aconselhada por uma amiga, procurou uma médium que lhe disse que os
espíritos de todos os mortos pelos rifles Winchester eram os
culpados pela maldição. Eles tinham levado sua filhinha e seu
marido como retribuição, e a única maneira de Sarah fugir dos
espíritos seria comprar uma casa e aumentá-la continuamente.
Construir novas peças,
puxados, andares, anexos, terraços, alas – sem parar. No dia em
que parasse a construção, segundo a médium, Sarah também
morreria. Os espíritos chegariam a ela e também a levariam. Sarah
comprou uma casa em San Jose, na Califórnia, e pôs-se a aumentá-la.
As obras duraram, sem interrupção, até o dia da sua morte e a casa
– que ainda existe, e hoje é uma atração turística em San Jose
– chegou a ter sete andares, antes de ser parcialmente demolida por
um terremoto, que Sarah atribuiu aos espíritos enraivecidos.
Sarah era sua própria
arquiteta. Construiu corredores que levam a lugar nenhum, escadas
para o nada, portas que dão no espaço e dezenas de quartos. Dormia
num quarto diferente à cada noite, para enganar os espíritos.
Pode-se imaginar uma horda variada de fantasmas abatidos pelo
Winchester – soldados, bandidos, índios, mexicanos, tantos quanto
os fantasmas de Hiroshima e Nagasaki – perdida no casarão atrás
de Sarah, que conseguiu ludibriá-los até os 85 anos, quando morreu.
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