sábado, 7 de setembro de 2013

 

08 de setembro de 2013 | N° 17547
VERISSIMO

Os fantasmas

Armas químicas são produtos do engenho humano, como qualquer outra arma. São mais repugnantes porque associamos química à vida e não à morte, apesar de todos os venenos que ela produz. Mas o universo moralmente neutro e sem remorsos em que elas são desenvolvidas e usadas é o mesmo.

Mikhail Kalashnikov criou o mais usado fuzil automático do mundo, o AK-14. Não sei se já morreu, mas vivia uma aposentadoria tranquila nos Urais, cercado pelas filhas. Fora a surdez, resultado dos anos testando armas, não ficou com nenhuma sequela do seu trabalho. Certamente nenhum remorso. Orgulhava-se do que tinha feito pela pátria.

A simplicidade e a eficiência do AK-14 foram responsáveis pela sua adoção universal depois do aparecimento do primeiro protótipo, e ele chegou a ser o produto mais exportado da União Soviética. Se foi usado em guerras sujas, massacres e assassinatos em todo o mundo, inclusive na Rússia, isso não era da conta de Mikhail, que só fez o seu trabalho. Nenhum fantasma shakesperiano perturbou o seu sono nos Urais, como os fantasmas que visitaram Ricardo III antes da sua batalha final para lhe dizer “Desespere e morra”.

J.Robert Oppenheimer foi visitado por milhares de fantasmas. Depois do triunfo do programa do qual ele era o diretor científico, com as explosões atômicas bem sucedidas em Hiroshima e Nagasaki, ele festejou alegremente com sua equipe. Depois teve uma crise de consciência e uma transformação.

Ele e a equipe não tinham apenas feito seu trabalho e criado uma arma eficientíssima, com brilhantismo. Tinham dado à luz um monstro inédito no mundo e provocado a mais radical intervenção da ciência na vida humana desde que esta existia. Isto e os mortos assombraram o resto da vida de Oppenheimer. Ele se opôs à construção da bomba de hidrogênio e foi considerado um pouco penitente e filosófico demais para continuar à frente do programa nuclear americano, sendo substituído pelo mais pragmático Edward Teller. “Let me sit heavy in thy soul”, que eu pese na sua alma, diziam os fantasmas vingativos de Ricardo. O maior feito da ciência na História pesou na alma de Oppenheimer até o fim.

Sarah Winchester conseguiu driblar os fantasmas. Ela era a viúva de William Winchester, filho do fabricante do fuzil Winchester, “o rifle que conquistou o Oeste”. Além de usado para eliminar coiotes, índios e outros entraves à ocupação do Oeste bravio, o Winchester – uma arma tão revolucionária, na sua época, quanto a máquina de matar de Kalashnikov – chegou ao mercado pouco antes de começar a Guerra da Secessão americana, que fez a fortuna da família.

Sarah e William tiveram uma filha, Annie, que morreu ainda bebê, começando o que Sarah identificou como uma danação sobre a sua família. Pouco depois, William também morreu, de tuberculose, confirmando para Sarah que o nome Winchester vinha carregado de pragas e maus presságios. Aconselhada por uma amiga, procurou uma médium que lhe disse que os espíritos de todos os mortos pelos rifles Winchester eram os culpados pela maldição. Eles tinham levado sua filhinha e seu marido como retribuição, e a única maneira de Sarah fugir dos espíritos seria comprar uma casa e aumentá-la continuamente.

Construir novas peças, puxados, andares, anexos, terraços, alas – sem parar. No dia em que parasse a construção, segundo a médium, Sarah também morreria. Os espíritos chegariam a ela e também a levariam. Sarah comprou uma casa em San Jose, na Califórnia, e pôs-se a aumentá-la. As obras duraram, sem interrupção, até o dia da sua morte e a casa – que ainda existe, e hoje é uma atração turística em San Jose – chegou a ter sete andares, antes de ser parcialmente demolida por um terremoto, que Sarah atribuiu aos espíritos enraivecidos.


Sarah era sua própria arquiteta. Construiu corredores que levam a lugar nenhum, escadas para o nada, portas que dão no espaço e dezenas de quartos. Dormia num quarto diferente à cada noite, para enganar os espíritos. Pode-se imaginar uma horda variada de fantasmas abatidos pelo Winchester – soldados, bandidos, índios, mexicanos, tantos quanto os fantasmas de Hiroshima e Nagasaki – perdida no casarão atrás de Sarah, que conseguiu ludibriá-los até os 85 anos, quando morreu.

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