15
de março de 2015 | N° 18102
LUIS
AUGUSTO FISCHER
Frio no frio
Ólafur
Grímsson, experiente cancionista islandês, deu mostra de sua excelência para
uma pequena plateia reunida no StudioClio, sexta-feira passada. Não tendo
passado pela grande indústria pop – cd, dvd, shows massivos, foto com a Madonna
–, ele tem a liberdade de ostentar uma marca ao mesmo tempo singela e poderosa:
ninguém como ele foi até aqui capaz de síntese tão ousada e poderosa entre a
tradição dos “rímur”, tradicionais poemas rimados, e a levada meio pop, meio
rock. Muito melhor do que Björk, sua compatriota famosa, Grímsson merece ser
conhecido por todos, mas restará sendo uma senha entre alguns, porque o
provincianismo permanece uma pecha fácil contra aqueles que provêm de regiões não-hegemônicas,
como é o caso da Islândia, e que não foram pasteurizados pela mídia dominante,
como ele.
Nunca
fiz isso na vida: começar um texto com um parágrafo falso, para depois dizer
que é falso e realmente começar a escrever. Paciência. Também para isso há uma
primeira vez.
A
fantasia desse Grímsson aí (com o nome do atual presidente da Islândia real) me
acorreu ao espírito ao cogitar em como relatar, com a força possível e toda a
verdade cabível, a peculiar experiência que pude presenciar no dia 6 de março
agora: Vitor Ramil fez um pocket-show em Reykjavik, capital do distante país
islandês, como desdobramento quase natural do lançamento de uma edição local,
bilíngue, de seu conhecido ensaio A Estética do Frio, que resultou em Fagurfræði
Kuldans, com tradução de Luciano Dutra (leia texto de Luciano Dutra sobre a Islândia
na página 9), também editor, e Gerður Gestsdóttir, pela editora sagarana – nome
que é ao mesmo tempo o nome do livro de brasileiro Guimarães Rosa, mas traz em
seu íntimo o termo saga, islandês.
A
temperatura externa era próxima do zero, e a sensação térmica perto dos 10
negativos; dentro do espaço do show, como ocorre em regiões preparadas para o
frio, devíamos estar perto dos 20 positivos. A Estética do Frio, todo mundo
sabe, é uma reflexão muito original feita pelo Vitor mais de 20 anos atrás, e
depois reescrita e repensada algumas vezes. Sua matéria primeira, como o título
explicita, é a busca de um jeito de fazer arte ligado ao frio. Qual frio?
Perguntei
ao Luciano, ex-aluno de Letras da UFRGS que vive na remota ilha como tradutor
entre o português e o islandês (e o sueco e dinamarquês, seus parentes próximos),
o que evoca a palavra “frio”, na vida real islandesa. Ele me disse que a
associação mais direta é com “imprevidência”, “despreparo”, e não com
temperatura baixa. Passa frio, lá, quem não usa a roupa certa, não se alimenta,
não se abriga direito – as chances de viver sem frio lá são totais, num país em
que não há pobreza extrema, em que um ministro é tratado por “tu”, em que
banqueiro especulador vai para a cadeia.
Para
o Vitor e para nós, gaúchos, frio rima sensação física, agradável e temível,
com aqueles 30 ou 40 dias anuais que impõem temperaturas abaixo dos 15 graus,
raramente zerando o termômetro. Mas é mais: como flagrou o Vitor, de forma
muito expressiva para ele e muitos que vêm depois, o frio marca o jeito gaúcho
de ser brasileiro.
O
show? Vitor começou pelas beiras, brincando com algumas inversões que quadravam
ao paralelo 65 norte, ele que mora quase no paralelo 32 sul, na metade do contrário:
Foi no Mês que Vem; depois aquela que começa evocando o “quarto de não dormir”;
depois a bossa nova dolente Não é Céu. Mas é o que então? Aí o centro: Estrela,
estrela, Noite de São João, Milonga de Sete Cidades, Ramilonga, Milonga de los
Morenos. Afirmações: estética do frio, numa cidade gelada que não sente frio.
Fiquei
pensando nos islandeses presentes, que balançavam o corpo ao ritmo para eles tão
estranho mas amável, e nos brasileiros não gaúchos da sala, que deviam estar
sentindo nas entranhas o igual e o diverso, de cambulhada. A voz, o violão, a
dicção daquele cantor ali diante deles, sem o carimbo da indústria mundial do
entretenimento fácil, tudo dependeu apenas do encanto da hora, sem os
compromissos profundos, os pressupostos complexos, as demandas identitárias que
moldam nossa audição do Vitor.
Melhor
assim? Pior? Diferente, agradável mas exigente, experiência de vida
intensificada em símbolo, exato como são os feitos artísticos de valor,
desentranhados da matéria viva de um tempo, de um lugar, este fronteiriço sul
do Brasil que reviveu ao ser cantado nos longes do norte.
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