segunda-feira, 30 de março de 2015


30 de março de 2015 | N° 18117
MARCELO CARNEIRO DA CUNHA

“Better Call Saul” e o poema televisivo

Claro que vocês não sabem disso, mas eu adoro poesia. A boa poesia e a grande poesia, o que significa que eu adoro mais ou menos 0,00000001% da poesia que já foi escrita neste mundo vasto mundo. E um dos meus poemas favoritos começa assim “Something there is that doesn’t love a wall”. Olhem que beleza. Something there is. Algo há, algo há, que não gosta de muros.

Algo há que não quer que Saul se dê bem nesta ou em qualquer outra vida, é o que vemos ao assistir o soneto que é Better Call Saul. A conspiração contra Saul, que, aliás, se chama Jimmy, é cósmica, e nos comovemos com a luta de Jimmy em sua fase pré-Saul contra o universo que o desencanta com uma frequência tão constante quanto maldosa. Jimmy é o não eleito, o não pródigo, o sujeito condenado a ser uma versão inferior de si mesmo, uma sombra do homem que ele tenta desesperadamente ser, antes de desistir e virar Saul.

Breaking Bad é herdeiro de Os Sopranos e The Wire, grandes textos, grandes personagens, grandes destinos se impondo a pequenos homens. Better Call Saul herda a maluquice de Twin Peaks, mas sem a sua loucura. Um dos personagens sofre de “alergia a eletricidade”, o que quer que isso seja. O escritório de Saul, por hora Jimmy, fica em um salão de cabeleireiros.

Mike, o grande solucionador de problemas insolúveis em Breaking Bad, em Better Call Saul, trabalha em um posto de cobrança de estacionamento. A ordem, até aqui, é a da desordem, e se coisas rimam é porque a vida exige isso: do caos, de qualquer caos, sai um universo, e é a este universo improvável e encantador que temos acesso, como espectadores e cúmplices de Jimmy.

Sabemos o que ele vai virar, e isso dói, ao mesmo tempo em que fascina. Os melhores personagens são aqueles com os quais nos importamos, e Jimmy já é o personagem mais irresistível desde que inventaram o personagem irresistível.

A nova televisão tem dono, e é a Netflix, que nem TV é. Ironias, ironias e a vida, tal qual a grande poesia, está cheia delas.


Do lado de cá, nos resta aproveitar e ao máximo, enquanto der.

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