quinta-feira, 26 de março de 2015


26 de março de 2015 | N° 18113
DAVID COIMBRA

Se essa rua fosse minha

Descobri um novo prazer. Você não vai acreditar: ir ao supermercado. Por Deus, adoro ir ao supermercado.

Já sei, você dirá: “Está em idade provecta”.

Talvez esteja, mas não foi o peso dos anos que me fez descobrir esse contentamento. Vou explicar o que foi. Deu-se assim:

Outro dia, voltava do Trader Joe’s com duas sacolas de compras nas mãos. Na verdade, não era dia; era noite – umas 22h, com temperatura amena, para surpresa e gáudio de homens e bichos.

Esse Trader Joe’s é um supermercado meio natureba, não vende nem refrigerante, que faz mal. A região em que moro é ecologicamente correta, as sacolas de plástico são proibidas. Então, eu carregava duas resistentes sacolas de papel reciclado cheias de mantimentos, entre os quais um bolo de banana que gosto de comer enquanto vejo House of Cards.

Aí tocou o celular.

Era o meu irmão, que ligava da outra ponta do continente. Como as sacolas me atrapalhavam, pousei-as no chão, refestelei-me sobre um banco plantado na calçada e comecei a falar ao telefone. Aos 10 minutos de charla é que dei por mim. Descobri, naquele momento, o prazer a que me refiro. Disse para ele:

– Cara, tu não imaginas a sensação boa que é poder fazer apenas isto que estou fazendo agora: numa noite tranquila, no caminho entre o supermercado e a casa, sentar-me em um banco na calçada para conversar sem pressa.

Pois aqui tenho feito essas coisas incríveis: vou a pé buscar o meu filho na escola, caminhamos despreocupados pela rua e, às vezes, decidimos tomar um sorvete de baunilha na J.P. Licks, que fica a uma quadra de distância. Sentamos nas poltronas de couro, ouvindo a velha e boa música nacional de caras como Billy Joel ou Bob Seger.

Depois, saímos devagar, conversando sobre questões prementes, como se a capacidade que o Homem-Aranha tem de escalar paredes vem da aranha radioativa ou de algum poder de sucção da roupa que ele costurou. Volta e meia entramos na livraria que fica mais adiante e damos uma olhada nos livros. Comprei alguns mapas para ele lá, meu filho é um apreciador de mapas. À noite, se não faz muito frio, eu, ele e a Marcinha zanzamos pelas ruas próximas, admirando os grandes sobrados de madeira e os esquilos que correm pelos galhos das árvores. Ou então... que delícia, vou ao supermercado.

Caminhar pela cidade, nada mais do que isso, na hora em que quiser, sem medo, sem olhar para os lados, sem ter de tomar cuidado com o que quer que seja: que grande, que inaudito, que inesperado prazer. Mas isso você só pode fazer num lugar em que o Estado o respeita, onde o Estado é responsável pela segurança do cidadão, onde jamais o Estado cogitará cortar um terço das despesas de áreas vitais para as pessoas, como saúde, educação e segurança pública.


Caminhar na rua, sentir que a rua é minha. Um Estado que não proporciona ao menos esse prazer gratuito ao cidadão, francamente, é um Estado para se ter vergonha.

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