sábado, 28 de março de 2015


28 de março de 2015 | N° 18115
DAVID COIMBRA

Eu amo meus clientes

Comprei um carrinho de polícia para o meu filho. Estou olhando para o carrinho neste momento, estacionado em cima da minha mesa. Viatura número 388. Os dois pneus traseiros estão com a borracha meio derretida, parece que foram esvaziados por algum fora da lei. A tinta branca da porta descascou, mal se consegue ler o lema: “To protect and to serve”.

Como é que nós não vimos esses defeitos? Meu filho o escolheu criteriosamente, entre tantos outros na lojinha. Ao chegarmos em casa, a Marcinha mal pôs os olhos no carrinho e apontou:

– Está todo estragado.

As mulheres têm essa capacidade de ver coisas que nós não vemos.

A lojinha em que o compramos fica perto da escola em que meu filho estuda. É uma tabacaria, só que quase sem cigarros.

Falando nisso, me diga: ainda existem tabacarias como as d’antanho, quando fumar e escrever com apóstrofo era elegante?

Essa tabacaria é das antigas. Poderia passar horas dentro de um lugar assim. Sempre gostei de tabacarias, mas essa é especial. Na porta, há um pequeno cartaz escrito à mão: “Meus clientes são as melhores pessoas do mundo”. Você entra e lá está aquela velhinha, sentada numa poltrona, com um cobertor sobre os joelhos. Ela tem um bóton pregado no peito, onde se lê: “Eu amo os meus clientes”.

Na parede, há fotos da velhinha em diversas fases da vida, sempre dentro da tabacaria. Ela em 1975, uma jovem senhora sorridente de cabelos longos. Ela em 1983, os cabelos mais curtos, mas o mesmo sorriso. Perguntei-lhe há quanto tempo tem a loja, e ela, orgulhosa:

– Há 75 anos!

Setenta e cinco anos! Ficarei feliz se viver o tempo que ela passou dentro da tabacaria. Quantos anos terá? No mínimo, 90. Nem se levanta da poltrona. Fica ali, sorrindo de leve para os clientes, que diz amar. Como esse lugar se sustenta? Tudo é tão... antigo... tão fora de moda...

Olhei para as prateleiras e senti uma onda de nostalgia aquecer-me o peito. Além de poucas caixas de charuto e muitos carrinhos de metal, havia gibis dos super-heróis Marvel, almanaques, lápis de cor, revólveres de brinquedo, cartões-postais, um arco e flecha de plástico, um nariz falso com óculos e bigode igualzinho ao que vi no rosto do meu avô numa foto de um Carnaval dos anos 1940, cobras e aranhas de borracha, bolas de vários tamanhos, cubos mágicos como nunca tive, jogos de monopólio, baralhos, isqueiros e, o que mais gostei, soldadinhos de chumbo e bonequinhos do Faroeste.

Fiquei tocado ao ver estes últimos itens porque, quando guri, um dos meus brinquedos favoritos era um Forte Apache que ganhei de Natal. Mas meu filho não se interessou por nada disso. Na verdade, encarou tudo com certo desdém, a não ser o carrinho de polícia número 388. Senti vontade de comprar o cubo mágico, mas me contive. Paguei os US$ 5 pelo carrinho, meu filho o colocou na mochila, sorriu para a velhinha e ela sorriu para ele. Quando estávamos na porta de saída, ela disse:

– Vocês me fizeram felizes com sua visita.

Por algum motivo, achei que estava sendo sincera.


Então, chegamos em casa e minha mulher viu os defeitos do carrinho. Coloquei-o sobre a mesa e me pus a examiná-lo. A Marcinha quer que a gente vá trocar por outro, mas, sei lá, me afeiçoei ao carrinho. Acho que é meio parecido comigo, tortos que somos. Vou ficar com ele por mais algum tempo. Talvez, mais tarde, volte à tabacaria, mas não sei se terei coragem de devolvê-lo. Talvez converse um pouco com a velhinha, dê uma folheada no gibi do Fantasma e, quem sabe, compre aquele cubo mágico, afinal.

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