14
de março de 2015 | N° 18101
NÍLSON
SOUZA
TEMPO DE
TRAVESSIA
Gosto
de histórias sobre travessias. Deve ser uma herança genética dos meus trisavós
açorianos que cruzaram o Atlântico para construir este Porto dos Casais onde
nasci, dois séculos depois daquela aventura motivada pela fome. A vida é uma
travessia, para alguns entre o acaso e o nada, para outros entre o primeiro
choro e o sono eterno, para todos – independentemente de crenças ou descrenças
– entre o embarque e o desembarque neste planeta que também cumpre a sua viagem
galáctica.
Já
que filosofo, lembro um texto que li sobre Sidarta Gautama. Numa de suas
andanças, Buda encontrou um monge solitário que vivia à beira de um rio. O
homem relatou-lhe, orgulhoso, seus progressos espirituais alcançados depois de
40 anos de meditação. Aprendera a levitar e era capaz de transportar-se para o
outro lado do rio sem molhar os pés. Sidarta, então, comentou:
–
Não teria sido mais fácil e rápido atravessar o rio utilizando-se do seu barco?
Moral
da história: de nada adianta o conhecimento e o poder se eles forem utilizados
apenas em benefício próprio.
Corta
para o Brasil. Estamos vivendo um momento turbulento da nossa travessia
histórica entre a Terra de Santa Cruz, que os portugueses surripiaram dos
índios, e a pátria amada dos sonhos de todos nós, gigante pela própria
natureza, próspera e justa. Para ficarmos com a imagem dos navegadores, parecemos,
neste momento, mais uma nau à deriva do que propriamente um barco com timão,
rumo e comando. Uma nau de insensatos, se juntarmos CPIs, manifestações de rua
e bateção de panelas. A sensação é de que, se não aprendermos a levitar, vamos
todos molhar os pés.
Mas
sempre é bom lembrar que se trata apenas de uma travessia, a exemplo de tantas
outras que já fizemos ao longo da nossa existência como nação. Tudo isso que
está aí vai passar, como na canção de Chico Buarque com os seus versos
premonitórios: “Dormia/ A nossa pátria mãe tão distraída/ Sem perceber que era
subtraída/ Em tenebrosas transações”.
De
quando em quando, acordamos. Ainda não dá para ver a outra margem, pois o
nevoeiro continua denso. Mas a algum lugar vamos chegar. Basta continuar
remando. Outro poeta, Fernando Pessoa, ensinou: “É tempo de travessia. Se não
ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos”.
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