15
de março de 2015 | N° 18102
L.
F. VERISSIMO
Pois é
O
homem acorda com uma cara preocupada. Diz à mulher ao seu lado:
–
Sonhei que nós estávamos dançando.
– O
quê? – Nós dois. Dançando. No
Central Park de Nova York .
– “Dancing in the dark”? Como
no filme?
– É.
Cid Charisse e Fred Astaire...
–
Que sonho lindo!
–
Pois é...– Mas então por que você está com essa cara?
– É
que, no sonho, eu era a Cid Charisse...
ENCONTRO
Duas
amigas conversando. – Você não sabe quem eu encontrei ontem. O Júlio.
–
Júlio, a sua grande paixão? – Júlio, a minha grande paixão. – E como ele está?
– Olha, até que não está tão mal. 30 anos depois...
–
Ele era um homem bonito.
–
Bonito e interessante. Lembra como ele era interessante? Até brilhante. E
divertido.
– E
continua? – Só vou dizer uma coisa: ele passou o tempo todo falando da
importância de ter movimentos intestinais regulares.
– O
quê?! – O tempo todo. Perguntou de saída pelos pela minha peristalse e não
mudou mais de assunto.
–
Pela sua o quê?!
–
Peristalse. Ele me explicou. É o movimento da musculatura dos intestinos que
impele o excremento. Segundo ele, uma peristalse regular é o segredo para uma
vida saudável. Eu ainda tentei lembrar do nosso tempo juntos, do nosso romance,
da lua cheia na Piazza San Marco, mas em vão. Quando perguntei se ele ainda
gostava de arte e música como antigamente, ele nem ouviu e me perguntou o que
eu sabia da flora intestinal. Quando eu disse “nada” passou a descrevê-la em
minúcias, como antigamente me descrevia um quadro.
–
Que coisa triste...
–
Pois é. Não quis saber nada a meu respeito, além dos movimentos dos meus
intestinos. Quando nos despedimos ele só disse “lembre-se, regularidade,
regularidade”. Fiquei pensando que a existência humana talvez seja isso, uma
lua cheia na Piazza San Marco num extremo e a peristalse no outro. Triste,
triste.
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