30
de março de 2015 | N° 18117
DAVID
COIMBRA
Santas ou feras
Soube
que arrancaram todos os dentes de Santa Augusta. Arrancaram por tortura, porque
ela teimava em rezar para o deus cristão e Jesus, e não para Odin ou Thor. Arrancaram
a torquês, a mando de seu próprio pai, que, além de ser um homem muito brabo,
era general do exército de Alarico, o rei dos visigodos, que saqueou Roma e deu
apelido ao afilhado do Zé Antônio Pinheiro Machado.
Depois
desse suplício, Augusta ainda teve o corpo queimado e foi torturada num
equipamento tenebroso chamado “roda dentada”, para só então morrer decapitada. Aí
virou santa. Era assim que as pessoas viravam santas.
Santa
Augusta é o nome do presídio de Criciúma. Visitei-o várias vezes, nos anos 80, a fim de fazer matérias para o Diário
Catarinense. Não foi a única cadeia em que entrei por força da profissão. Como
velho repórter de polícia, estive em vários presídios, inclusive nos femininos
e na Fase. Já dei palestras para detentos. Já escrevi um livro junto com um
presidiário, sabia? Mas um dia aconteceu algo, nesse Santa Augusta, que me
tocou em especial.
Naquele
dia, o carcereiro estava todo orgulhoso porque havia conseguido montar o que
chamava de “biblioteca” para os presos. Levou-me até o lugar: uma salinha pouco
maior do que um armário em que ele empilhara revistas e livros usados. Enquanto
folheava alguns exemplares, perguntei:
– Eles
leem bastante?
– Não
muito – reconheceu. – É que tenho de cuidar, quando empresto um livro. Tenho
que ter certeza de que vão ler mesmo.
Achei
estranho: – Por quê?
– Porque
muitas vezes eles pegam os livros para arrancar as páginas do meio. Para se
limpar.
Para
se limpar! Os presos do Santa Augusta usavam os livros como papel higiênico.
Dias
atrás, vi uma matéria de TV sobre a cadeia em que está o Renato Duque. Vi cenas
da cela em que o colocaram. Uma peça do tamanho de um quarto de solteiro, onde
três detentos se acomodam com certa dificuldade. Não há banheiro – há um buraco
no chão, fazendo as vezes de privada, e uma pia. O banho (frio) é coletivo. Sobre
a cama, uma toalha, um cobertor e... um rolo de papel higiênico.
Aquele
rolo de papel higiênico centralizou minha atenção. Teria sido posto ali, pelo
administrador da cadeia, como prova da civilidade da sua prisão? Será que Duque
vai continuar recebendo rolos de papel higiênico, ou terá de arrancar páginas
internas de livros para se limpar, como faziam os detentos do Santa Augusta?
Não
fiquei feliz ao saber dos sofrimentos pelos quais está passando o Renato Duque
agora, não fico feliz ao saber dos sofrimentos pelos quais passam os mais de 500
mil presos do Brasil. Mais de meio milhão de pessoas que não estão na base da
pirâmide social – estão sob ela, soterradas, esquecidas, pessoas com as quais
ninguém se importa, nem direita, nem esquerda, nem Estado, nem nada.
Tenho
acompanhado as discussões sobre a redução da maioridade penal no Brasil. Que
debate é esse, se o Estado brasileiro não consegue sequer acomodar com
dignidade os presos que já estão sob sua tutela?
Punição
justa educa, isso é certo. Punição justa forma cidadãos. Mas é certo também que
punição injusta forma feras. Só nos planos etéreos da Igreja é que a crueldade
transforma seres humanos em santos.
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