segunda-feira, 23 de março de 2015


23 de março de 2015 | N° 18110
DAVID COIMBRA

A maternidade e a morte

Sei por que as pessoas se comovem diante da Pietà, na entrada da Basílica de São Pedro. Muitos dos que a veem talvez não entendam as razões do que sentem, talvez acreditem que o que lhes tirou a respiração foi a cena compassiva reproduzida por Michelangelo ou, quem sabe, a perfeição do drapeado do manto de Maria, onde o artista transformou marfim em seda.

Isso tudo é muito, mas muito não é tudo.

A Pietà nos inquieta porque nela está representada a condição humana. O começo e o fim da vida foram reunidos numa única obra de arte. Olhe para a mãe lacrimosa: Michelangelo a fez mais jovem do que o filho em seus braços. Ao mesmo tempo, fez o filho de menor estatura do que a da mãe. Essas aparentes imperfeições são o toque do gênio.

Um Jesus com corpo de menino acentua a maternidade de Maria – ela é a mãe, ele é o filho. E, ao mesmo tempo, a juventude de Maria mostra que ali está uma mulher que ainda é capaz de dar à luz. De gerar vida. A maternidade e a morte juntas, diante dos seus olhos. Como não se emocionar?

Por sua concepção, a Pietà é das obras mais poderosas feitas por mão humana, talvez a mais poderosa, embora, sei bem, muitos olhos a contemplem sem se umedecer, e se deixem tocar por outras façanhas do homem.

O sentido da arte é esse mesmo, é fazer sentir.

Quais seriam os sentimentos de Renato Duque quando se punha em meio às 131 pinturas por ele amealhadas, em seu faustoso apartamento na Barra da Tijuca? Será que, na contemplação de seu museu particular, pensava na origem do dinheiro que o proporcionou? Tal lembrança marejava-lhe os olhos?

Segundo o Ministério Público, de 2003 a 2012 Duque captou R$ 1,5 bilhão, destinando R$ 200 milhões para o PT. Sabe-se que tinha R$ 70 milhões na Suíça. Sobra ainda uma fortuna. Quanto disso foi para a arte? E trata-se mesmo da grande arte, de milhões de reais, ou só de reproduções de milhares?

A polícia descobriu um compartimento secreto no apartamento de Duque, atrás de duas paredes falsas, movidas por controle remoto e um botão escondido. Dentro havia joias, relógios e documentos. Quantos mistérios cercam esse homem.

A sofisticação desse personagem, confesso, me distraiu um pouco do assunto tão sombrio da corrupção do governo brasileiro.

Duque. Até o nome é bom. Duque é dos títulos mais importantes da nobreza. O duque era o chefe de um “ducado”. No Brasil, tivemos só dois duques, entre eles o de Caxias.

Nosso atual Duque, convocado para depor no Congresso, citou as palavras de um rei, Salomão, chamado Eclesiastes: “Há tempo de calar e há tempo de falar”.

Calado ficou. Chegará o tempo de falar? É o que o Brasil espera. Eclesiastes disse também: “A realidade está bem distante, e é muito profunda; quem pode descobri-la?”

Duque pode.

Duque ama a arte. Talvez a arte tenha-lhe ensinado a lição da Pietà: que a vida é breve, que só o que se deixa debaixo do sol é o que se faz pelos outros.

Ou, quem sabe, ele ouça as palavras velhas de 3 mil anos do Eclesiastes:

“Quem ama o dinheiro jamais terá o suficiente.


A fartura de um homem não lhe trará tranquilidade para dormir”.

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