sábado, 14 de março de 2015


15 de março de 2015 | N° 18102
MOISÉS MENDES

O reino dos Agilulfos

O cavaleiro Agilulfo era impecável em sua armadura branca, sem uma sujeira ou um arranhão. Gostava de se apresentar pelo nome completo: Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri de Corbentraz e Sura, cavaleiro de Selimpia Citeriore e Fez. Agilulfo servia ao grande Carlos Magno. Vaidoso e egocêntrico, sentia-se superior e diminuía tudo que os outros faziam.

Se alguém contasse um episódio heroico, Agilulfo logo se habilitava a desconstruí-lo, porque não teria sido bem assim. Agilulfo é O Cavaleiro Inexistente, de Ítalo Calvino.

Havia a armadura branca, havia até a fala de Agilulfo, que se manifestava de forma categórica sobre qualquer assunto, mas não havia nada dentro da armadura branca.

Agilulfo, dependendo de como se vê, pode ser uma farsa, uma ilusão ou uma idealização. Mais não conto porque podem dizer, como Agilulfo, que não é bem assim, que estou simplificando tudo.

Agilulfo é o cara destes nossos tempos. Um Agilulfo não existe como pensa que é. Sua armadura nem é tão branca (pode até ser muito colorida), mas ele acha sempre que as qualidades e os feitos alheios estão bem aquém do que ele pode fazer e até já fez.

O Brasil tem muitos Agilulfos. Consideram-se alinhados, inatacáveis e inabaláveis. Tudo que fazem é incomparável. Os Agilulfos enfrentaram inflação, desemprego e dólar como ninguém. Modernizaram o país com as privatizações.

A luz, o telefone e os pedágios são os mais caros do mundo, mas não questione um Agilulfo sobre isso, porque não foi um problema criado por eles.

Avanços sociais são resultantes das suas iniciativas. A estabilidade também. Um Agilulfo nunca envolveu-se nem se envolverá em corrupção. Não roubavam na Petrobras no tempo deles, lá na Idade Média.

Se roubaram, foi em roubos avulsos, como o do ladrão Pedro Barusco. Se houve mensalão, foi um mensalão regional, mineiro, que nunca mais será julgado. Os nossos Agilulfos, como o cavaleiro de Calvino, nunca serão convencidos de que foram um dia derrotados.

Os Agilulfos brasileiros sempre existiram, de forma quase dissimulada, mas somente agora, depois de vencidos (pela quarta vez seguida) em batalha que consideravam ganha, é que passaram a atuar na plenitude.

A frustração é compreensível. Consideravam-se herdeiros da social-democracia europeia. Seriam reconhecidos mundialmente, participariam de banquetes nas melhores confrarias. Mas os nossos Agilulfos, derrotados e desfigurados no que pretendiam ser, viraram ressentidos.

No romance de Calvino, ao ficar diante de Agilulfo e perceber que o cavaleiro não existia, Carlos Magno afastou-se conformado. Não tinha mais idade para tentar entender coisas tão complicadas.

Com o consentimento quase indiferente do líder, o cavaleiro pôde então continuar achando que existia. No caso brasileiro, os Agilulfos também têm uma armadura, uma fala e um cavalo. E pensam que existem como pensam que são.

Claro que eu não vou contar o fim da história do Agilulfo de Calvino, editada no Brasil pela Companhia das Letras. Mas os nossos Agilulfos andam por aí.


Neste domingo, você encontrará Agilulfos por todo lado, bradando que tudo ficou pior no Brasil, que eles é que sabem das coisas. Podem estar misturados a todo tipo de gente, mas um Agilulfo legítimo, a pé ou a cavalo, é inconfundível.

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