28
de março de 2015 | N° 18115
PALAVRA
DE MÉDICO | J.J. CAMARGO
A SAUDADE QUE
ENTERNECE
Usina
recicladora dos afetos permanentes, ela se torna ingrediente milagroso
Ninguém
encanta escrevendo sobre o que não sente. O David Coimbra sempre escreveu
maravilhosamente, mas quando parecia impossível melhorar, descobrimos que é
possível.
Se
nos dermos ao deleite de reler suas crônicas do último ano, perceberemos que as
contemporâneas, políticas ou não, são ótimas, mas as melhores são aquelas que
envolvem reminiscências, onde predomina, como era inevitável, o efeito
catártico da distância. Esse é o benefício dos anos sabáticos na depuração dos
sentimentos.
E
tudo simplesmente porque a revisão amorosa das nossas experiências de vida é
enriquecida pela saudade, essa poderosa usina recicladora dos afetos
permanentes. É esse o ingrediente milagroso que nos faz mais carentes, mas
também enternece a nossa memória e traz os nossos sensores afetivos para a flor
da pele.
Quando
vivi nos EUA, senti a necessidade visceral de escrever para aquelas pessoas de
quem, acabara de descobrir, gostava mais do que tinha tido o cuidado de
anunciar, e aquilo de repente me parecera um imperdoável desleixo emocional. Se
um paciente me lembrava algum amigo, canalizava o afeto reprimido, e cuidava
dele como se cuida de um ente amado. E como carência afetiva é um mal
cosmopolita, nunca me faltou um receptor disponível.
Foi
assim que me aproximei do Mr. Collis, um velho plantador de milho de Minnesota
que fora internado para tratar de um tumor de pulmão aparentemente precoce.
Pedi a um colega para assumir o caso dele, e nunca expliquei a nenhum dos dois
que eu precisava proteger a saudade que evocava aquela cabeça idêntica à do meu
pai.
Compartilhei
o entusiasmo com que lhe fora anunciada a perspectiva de cura e me condoí
quando o meu chefe anunciou, sem preâmbulos, que infelizmente estava frustrado
porque a doença estava disseminada e aquele nódulo pulmonar, de aparência
inocente, era, na realidade, a ponta do iceberg de um câncer avançado.
Depois
que o quarto esvaziou porque todos debandaram com aquela pressa de quem foge da
impotência, ficamos sós, e ele implorou que eu desse um jeito de protelar a sua
morte até depois do Natal, porque se não, a volta extemporânea do filho,
envolvido num projeto milionário na Tailândia, arruinaria sua brilhante
carreira de jovem engenheiro.
Ele
sabia que eu não tinha como ajudá-lo. Eu também. Mas nos prometemos. E como
dois seres apátridas, ficamos um tempo de mãos dadas, cada um administrando a
sua saudade. Esse sentimento imenso e único, que sempre aponta para casa. Não
importa a distância.
J.
J. Camargo é cirurgião torácico e diretor do Centro de Transplantes da Santa
Casa de Porto Alegre
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