sábado, 21 de março de 2015


22 de março de 2015 | N° 18109
CRISTINA BONORINO

O espelho de Alice

Minha filha sempre foi uma ávida leitora, desde bem pequena. Um dia, quando tinha sete anos, me comentou que gostava muito dos livros que eu levava para ela ler, mas que tinha um problema. Na maioria dos livros, reclamou ela, os personagens principais eram meninos, e ela achava isso meio chato. Estes eram livros clássicos, do Mark Twain, do Julio Verne, do Alexandre Dumas.

Pensei um pouco e respondi que achava que talvez fosse porque esses livros eram de uma época em que as pessoas achavam que os meninos eram mais importantes que as meninas. Nunca vou esquecer da reação dela – uma gargalhada enorme, espontânea e cristalina, como se eu tivesse acabado de contar a piada mais sem pé nem cabeça. Fiquei ali boquiaberta, olhando pra ela e pensando – que maravilha nascer e ser criada em uma família em que isso jamais foi sequer cogitado – imagina tratar meninas diferentemente de meninos!

Certamente Marie Curie, a primeira pessoa a ganhar dois prêmios Nobel, e a única a ganhar em duas áreas diferentes (física e química) era alguém fora da curva normal. Mas quem trabalha em ciência sabe de tantas outras mulheres brilhantes com histórias tristes, como a de Rosalind Frankel, cujo estudo por raios-X demonstrou a estrutura do DNA, mais tarde atribuída a Watson e Crick, que ganharam o Nobel. Esta profissão, que notoriamente demanda dedicação integral e determina que tudo seja razão e nada emoção, não parece, como os livros antigos, destinada a ser protagonizada por mulheres.

Podemos mudar isso? Um comercial americano mostra a trajetória de uma menina que em vários episódios da vida recebe um reforço negativo dos pais ao se envolver em atividades técnicas e cientificas. Não fica aí no mato olhando os insetos, meu amor, vai sujar o vestido! Deixa o lego pros meninos, querida, olha aqui a boneca.

Cuidado, não mexe no foguete que queima, minha linda, deixa pro teu irmão brincar com isso. Adolescente, ela passa por uma porta envidraçada da escola onde foi fixado um anúncio, hoje, feira de ciências. Ali ela se demora. Pensamos, agora ela vai! Mas ela tira um batom de dentro da bolsa, e usa a porta como espelho.

Um jovem colega recentemente comentou que estavam esperando uma menina, e ele se angustiava pois estava acostumado com meninos em casa. O que faria ele com uma menina, que precisa de perfumes e vestidos?

Respondi que ele não temesse partilhar com ela as coisas que ele achava masculinas, o futebol, as chaves de fenda, os motores dos carros. Ela crescerá lembrando com carinho das coisas que aprendeu com seu pai, sabendo que é menina, e linda, mas sem medo de manusear parafusos e furadeiras barulhentas.

Minha vida acontece em um mundo predominantemente masculino, como a da maioria das mulheres no mercado de trabalho. Meus mentores e modelos foram majoritariamente homens. Mas tive mais sorte que Rosalind Frankel; pude me espelhar em mulheres cientistas formidáveis, que me ensinaram a ser brutalmente racionais no trabalho, mas sair na hora do almoço para almoçar com os filhos, pois eles crescem rápido.


Vamos dizer às nossas filhas que sejam como Alice: ao invés de apenas se olhar no espelho, que o atravessem, rumo a impensáveis aventuras.

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