22 de março de 2015 | N°
18109
CRISTINA BONORINO
O espelho de Alice
Minha filha sempre foi uma ávida leitora, desde bem
pequena. Um dia, quando tinha sete anos, me comentou que gostava muito dos
livros que eu levava para ela ler, mas que tinha um problema. Na maioria dos
livros, reclamou ela, os personagens principais eram meninos, e ela achava isso
meio chato. Estes eram livros clássicos, do Mark Twain, do Julio Verne, do
Alexandre Dumas.
Pensei um pouco e respondi que
achava que talvez fosse porque esses livros eram de uma época em que as pessoas
achavam que os meninos eram mais importantes que as meninas. Nunca vou esquecer
da reação dela – uma gargalhada enorme, espontânea e cristalina, como se eu
tivesse acabado de contar a piada mais sem pé nem cabeça. Fiquei ali
boquiaberta, olhando pra ela e pensando – que maravilha nascer e ser criada em
uma família em que isso jamais foi sequer cogitado – imagina tratar meninas
diferentemente de meninos!
Certamente Marie Curie, a
primeira pessoa a ganhar dois prêmios Nobel, e a única a ganhar em duas áreas
diferentes (física e química) era alguém fora da curva normal. Mas quem
trabalha em ciência sabe de tantas outras mulheres brilhantes com histórias
tristes, como a de Rosalind Frankel, cujo estudo por raios-X demonstrou a
estrutura do DNA, mais tarde atribuída a Watson e Crick, que ganharam o Nobel.
Esta profissão, que notoriamente demanda dedicação integral e determina que
tudo seja razão e nada emoção, não parece, como os livros antigos, destinada a
ser protagonizada por mulheres.
Podemos mudar isso? Um comercial
americano mostra a trajetória de uma menina que em vários episódios da vida
recebe um reforço negativo dos pais ao se envolver em atividades técnicas e
cientificas. Não fica aí no mato olhando os insetos, meu amor, vai sujar o
vestido! Deixa o lego pros meninos, querida, olha aqui a boneca.
Cuidado, não mexe no foguete que
queima, minha linda, deixa pro teu irmão brincar com isso. Adolescente, ela
passa por uma porta envidraçada da escola onde foi fixado um anúncio, hoje,
feira de ciências. Ali ela se demora. Pensamos, agora ela vai! Mas ela tira um
batom de dentro da bolsa, e usa a porta como espelho.
Um jovem colega recentemente
comentou que estavam esperando uma menina, e ele se angustiava pois estava
acostumado com meninos em casa. O que faria ele com uma menina, que precisa de
perfumes e vestidos?
Respondi que ele não temesse
partilhar com ela as coisas que ele achava masculinas, o futebol, as chaves de
fenda, os motores dos carros. Ela crescerá lembrando com carinho das coisas que
aprendeu com seu pai, sabendo que é menina, e linda, mas sem medo de manusear
parafusos e furadeiras barulhentas.
Minha vida acontece em um mundo
predominantemente masculino, como a da maioria das mulheres no mercado de
trabalho. Meus mentores e modelos foram majoritariamente homens. Mas tive mais
sorte que Rosalind Frankel; pude me espelhar em mulheres cientistas
formidáveis, que me ensinaram a ser brutalmente racionais no trabalho, mas sair
na hora do almoço para almoçar com os filhos, pois eles crescem rápido.
Vamos dizer às nossas filhas que
sejam como Alice: ao invés de apenas se olhar no espelho, que o atravessem,
rumo a impensáveis aventuras.
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