sábado, 7 de março de 2015


08 de março de 2015 | N° 18095
MOISÉS MENDES

O vizinho é um show

A festa do bolo gigante do Bexiga, que comemorava o aniversário de São Paulo todo dia 21 de janeiro, durou 27 anos. O bolo entrou para o Guinness pelo recorde dos seus 400 metros. Resultava do trabalho de 200 voluntários, de uma tonelada de farinha de trigo e de mais de 3 mil ovos.

Era o presente dos comerciantes à comunidade. Até que, em 2008, os “repórteres” do programa Pânico na TV apareceram na rua e estimularam as pessoas a fazerem uma guerra com pedaços de bolo.

Ofendidos com o humor decadente da TV brasileira, os organizadores da festa decidiram que nunca mais trabalhariam para que um grupo de idiotas destruísse o esforço coletivo do Bexiga.

O que aconteceu em São Paulo se repete, de outras formas, em toda parte. É a imbecilização dos que só pensam em espetáculo. O humor rasteiro do Pânico se achava, em nome da liberdade de expressão e do riso, no direito de se apoderar da festa do bolo gigante.

Comer o bolo com as mãos não bastava. O talento do Pânico estava ali para aperfeiçoar a ideia. E o lixo da TV venceu a abnegação comunitária.

A obsessão pelo espetáculo, que transforma quase tudo, inclusive boa parte do jornalismo, em entretenimento, já foi tema de muito estudo. O debate ganhou a adesão de um pensador do liberalismo, em seu sentido econômico e político.

Mario Vargas Llosa é um dos constrangidos com os shows que rebaixam o sentido de cultura e podem fazer com que qualquer um seja reprodutor de bobagens na música, nas artes plásticas, na TV, no cinema, na literatura. A grande ilusão criada pela indústria da diversão (e agora pela internet) é a de que cada um pode oferecer seu espetáculo.

Fomos sequestrados pelo Pânico na TV e pela chamada arte contemporânea, que transforma uma piscina com uma gosma borbulhante – como se viu na última Bienal do Mercosul – em algo que ninguém sabe ao certo se foi parar ali para instigar (o quê?), emocionar, interrogar ou, se não conseguir nada disso, apenas para enganar.

A reflexão de Vargas Llosa está em vários ensaios reunidos em A Civilização do Espetáculo (Objetiva, 208 páginas). Mas o peruano atenua um dos principais apelos disso tudo, que é o individualismo exacerbado, abordado pelas beiras, talvez até para não ferir seu liberalismo.

Você, que voltou da praia ainda mais alarmado com o barulho sem limites, como se acordasse e dormisse com Ivete Sangalo e Luan Santana, saiba que a situação vai piorar.

O vizinho que ouve música a todo volume não extrapola apenas para desfrutar do barulho, mas porque quer compartilhar seu show. Ele monta o espetáculo para quem estiver por perto.

Foi-se embora, com a farra permanente, o que seria, em nome da boa vizinhança, a tal coexistência de vontades e arbítrios. Ouvir música hoje pode ser a imposição de uma apresentação aos que não desejam desfrutá-la. Tudo pelo exibicionismo.

Não cabe aqui a velha desculpa de que essa é uma conversa elitista de quem não compreende o alcance da arte de massa. A sociedade espetacularizada é também o resultado dos exageros de cada um, independentemente das restrições do outro.


Foi o neoliberalismo do vale-tudo que transformou o mundo neste grande Pânico na TV em que cada um produz e dissemina sua porcaria. Mas isso Vargas Llosa, um liberal juramentado, não irá admitir.

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