08
de março de 2015 | N° 18095
MOISÉS
MENDES
O vizinho é um
show
A
festa do bolo gigante do Bexiga, que comemorava o aniversário de São Paulo todo
dia 21 de janeiro, durou 27 anos. O bolo entrou para o Guinness pelo recorde
dos seus 400 metros .
Resultava do trabalho de 200 voluntários, de uma tonelada de farinha de trigo e
de mais de 3 mil ovos.
Era
o presente dos comerciantes à comunidade. Até que, em 2008, os “repórteres” do
programa Pânico na TV apareceram na rua e estimularam as pessoas a fazerem uma
guerra com pedaços de bolo.
Ofendidos
com o humor decadente da TV brasileira, os organizadores da festa decidiram que
nunca mais trabalhariam para que um grupo de idiotas destruísse o esforço
coletivo do Bexiga.
O
que aconteceu em São Paulo se repete, de outras formas, em toda parte. É a
imbecilização dos que só pensam em espetáculo. O humor rasteiro do Pânico se
achava, em nome da liberdade de expressão e do riso, no direito de se apoderar
da festa do bolo gigante.
Comer
o bolo com as mãos não bastava. O talento do Pânico estava ali para aperfeiçoar
a ideia. E o lixo da TV venceu a abnegação comunitária.
A
obsessão pelo espetáculo, que transforma quase tudo, inclusive boa parte do
jornalismo, em entretenimento, já foi tema de muito estudo. O debate ganhou a
adesão de um pensador do liberalismo, em seu sentido econômico e político.
Mario
Vargas Llosa é um dos constrangidos com os shows que rebaixam o sentido de
cultura e podem fazer com que qualquer um seja reprodutor de bobagens na
música, nas artes plásticas, na TV, no cinema, na literatura. A grande ilusão
criada pela indústria da diversão (e agora pela internet) é a de que cada um
pode oferecer seu espetáculo.
Fomos
sequestrados pelo Pânico na TV e pela chamada arte contemporânea, que
transforma uma piscina com uma gosma borbulhante – como se viu na última Bienal
do Mercosul – em algo que ninguém sabe ao certo se foi parar ali para instigar
(o quê?), emocionar, interrogar ou, se não conseguir nada disso, apenas para
enganar.
A
reflexão de Vargas Llosa está em vários ensaios reunidos em A Civilização do
Espetáculo (Objetiva, 208 páginas). Mas o peruano atenua um dos principais
apelos disso tudo, que é o individualismo exacerbado, abordado pelas beiras,
talvez até para não ferir seu liberalismo.
Você,
que voltou da praia ainda mais alarmado com o barulho sem limites, como se
acordasse e dormisse com Ivete Sangalo e Luan Santana, saiba que a situação vai
piorar.
O
vizinho que ouve música a todo volume não extrapola apenas para desfrutar do
barulho, mas porque quer compartilhar seu show. Ele monta o espetáculo para
quem estiver por perto.
Foi-se
embora, com a farra permanente, o que seria, em nome da boa vizinhança, a tal
coexistência de vontades e arbítrios. Ouvir música hoje pode ser a imposição de
uma apresentação aos que não desejam desfrutá-la. Tudo pelo exibicionismo.
Não
cabe aqui a velha desculpa de que essa é uma conversa elitista de quem não
compreende o alcance da arte de massa. A sociedade espetacularizada é também o
resultado dos exageros de cada um, independentemente das restrições do outro.
Foi
o neoliberalismo do vale-tudo que transformou o mundo neste grande Pânico na TV
em que cada um produz e dissemina sua porcaria. Mas isso Vargas Llosa, um
liberal juramentado, não irá admitir.
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