21 de março de 2015 | N° 18108
DAVID COIMBRA
O
russo e a holandesa
É certo que o russo tem mais de 60 anos. Talvez 65. Ele é
careca, com um pouco de cabelo branco brotando-lhe acima das orelhas. Os olhos
são azuis e a pele continua sem rugas. O que mais lhe denuncia a idade é a
pequena papada mole sob o queixo – quando ele fala, com sua voz baixa e seus
lábios finos, a papada treme. Os lábios do russo são de criança mimada, mas ele
parece um homem razoável. É um tipo bem-humorado, inteligente e culto: ele é
físico e já escreveu livros científicos, o que me parece bastante importante.
Esse russo é meu colega de aula. O curso é dividido de
acordo com as estações do ano. A fase do inverno terminou nesta semana e, no
último dia dessa etapa, nos pusemos a conversar sobre amenidades. Alguém
perguntou ao russo como era seu país no tempo do comunismo, e sua face se
ensombreceu.
– Terrível – definiu.
– Mas não havia igualdade? – perguntou Pablo, um hondurenho,
decerto pensando nas desigualdades de seu próprio país.
– Igualdade na miséria – o russo retorquiu. – E nas
proibições.
Todos olhávamos para ele, interessados.
– O que vocês não podiam fazer? – quis saber a professora
americana.
– Eu não poderia estar aqui, por exemplo. Não podia sair do
país. A primeira vez que saí...
E fez uma pausa. Olhava para algum ponto do quadro-negro,
pensativo, certamente nostálgico. Ficamos esperando que completasse a frase.
Aquelas reticências dançavam no ar da sala, deixando-nos com a respiração
presa.
“A primeira vez que saí...”
Os segundos iam se arrastando, e ele ainda fitava a parede.
Percebi que não falaria, e resolvi dar um empurrãozinho de repórter:
– Quando você saiu da Rússia pela primeira vez?
– Faz 20 anos... – ele respondeu devagar. Antes que as novas
reticências se agarrassem às velhas, emendei:
– Para onde você foi?
Ele sorriu de leve:
– Para a Holanda. Foi lindo. Foi lindo...
Sorveu o ar, como se estivesse respirando em meio às tulipas
holandesas, e prosseguiu, encadeando breves suspiros de quem está sentindo a
pontada da saudade:
– O lugar é maravilhoso. As pessoas também... Eu devia ser
holandês... Eu devia ser holandês...
E então penso ter visto o brilho das lágrimas cintilando no
azul de seus olhos. Ele estava emocionado. Percebemos isso. Sentimos isso.
Aquele velho senhor russo lembrava-se da sua primeira viagem para fora do país,
realizada quando ele já ingressara na meia-idade, e algo lhe tocara o coração a
ponto de se comover diante de estranhos vindos de todas as partes do mundo.
Fiquei imaginando que no centro de suas recordações devia
viver uma mulher, uma linda holandesa de cabelos da cor do trigo e pele da cor
do ouro, que foi amorosa e doce por uma temporada, que lhe deu os dias mais
alegres e a despedida mais triste da sua vida, ele no trem, voltando para a mãe
Rússia, rumo à Estação Finlândia da sua São Petersburgo, vendo a ensolarada
Amsterdã e a chorosa amada cada vez mais distantes, cada vez mais
inalcançáveis, porque certas emoções só sentimos uma única vez na existência, e
depois nunca mais, nunca mais...
Bem.
Tudo isso foi imaginação minha. Também eu viajei nas
lembranças do meu colega russo. Também eu senti, por um momento, o febril
delírio da liberdade.
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